sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Tchau, Mel.

Sempre que eu me pego pensando sobre o tempo fico intrigada com a sua volatilidade e sua função transformadora. Na infância, quando a gente só lembra do tempo no momento em que algo está para acontecer ou em que algo acaba, tudo parece mais fácil. O tempo é amigo e vilão, mas nesse intervalo aí a gente esquece da existência dele. Deixa passar. E, claro, ele passa até que nos tornamos adultos e o tempo se torna uma bomba relógio prestes a explodir no nosso colo. Tempo para cumprir,  para ser, para deixar de ser,  para esperar, para ver o fim chegar. Tudo passa pelo crivo desta coisa absurda e impalpável que, mesmo assim, dorme e acorda ao nosso lado. Literalmente.
Há pouco mais de dois anos atrás eu era uma menina cheia de quereres e expectativas, portando algumas folhas escritas nas mãos, muitas teorias e curiosidades na cabeça e o desejo latente de que alguém se interessasse por tudo isso. O tempo era meu inimigo posto que, entre escrever e esperar o resultado, eu vi o mundo girar várias vezes. Era o futuro incerto tirando a paz do presente. Alguns dias depois eu era a menina feliz por ter as suas páginas lidas e por ter sido escolhida. O futuro acenando para mim. Um abraço que eu teria que correr mais um pouco para ganhar, mas que também poderia não acontecer. Era preciso confiar no tempo.
Há um ano atrás eu estava vivendo o desafio de sair do meu conforto em prol da minha missão. Deixei para trás o meu aconchego, o carinho das pessoas próximas, dentre tantas outras coisas que só hoje possuem o sentido real que merecem. Coloquei na mala uma porção de livros, cadernos, uma câmera, papel, tinta, lápis de cor e amor. Aprendi que abrir mão das coisas seria a minha atividade diária a partir daquele momento. Fui sem olhar para trás, confiando no tempo porque ali, naquele momento, ainda que malvado, ele tinha que ser meu aliado. Esperar, confiar, esperar, perceber, esperar, germinar, esperar, voltar. A imagem do  futuro se mostrava embaçada e não tinha lente que me possibilitasse enxergar nada ao meu redor. Uma neblina que se confundia com o efeito do meu choro, mas que eu sabia que tinha pai: o tempo. 
Há oito meses atrás eu estava novamente exilada, mas dessa vez em um outro lugar. Era preciso abrir mão novamente. A menina que tinha lido e escrito muito, descobriu que precisava ler e escrever mais. Sozinha. Literalmente. A neblina aumentava diariamente e o choro de igual maneira. Só quem abre mão sabe o que é deixar ir sem saber se vai ter uma volta. Mais que isso, sem se despedir. Nesses dois anos, todas as vezes em que eu precisei abrir mão de algo eu não fiz uso do tchau. Não foram poucas vezes em que eu engoli o choro, vesti minha armadura e sai com a alma em frangalhos, acreditando que ao menos a minha cama seria um bom lugar para reconstruir o que estava totalmente destruído. Nunca um adeus. 
Entre livros, escritos, silêncios, choros e soluços eu me apaixonei e amei demais. Eu não sei, nem nunca saberei ser de outro jeito. Sou da tribo dos que sentem em volume alto. Amei querendo gritar, mas me mantive calada. Deixei no mudo. Era ele, o tempo, me indicando que meu grito poderia não ser entendido. Ele bem estava certo. Quem sente em latências carrega consigo o carma de ser incompreendido. Calar o querer não é covardia. É a plena coragem de segurar algo que é seu e engolir, caso seja necessário. Uma cadeia alimentar onde nada morre, só deixa de ser porque ele, o tempo, se encarrega.
Há dois dias atrás a  neblina se dispersou. As poucas folhas deram lugar a um camalhaço volumoso carregado de teorias, saberes, símbolos, cores e amor. Aquele mesmo que eu havia engolido forçosamente e mais uns tantos outros. Amor materno. A menina lá do começo deu lugar a uma mulher bélica no sentido mais real do termo. Não menos doce que antes, mas totalmente empoderada, como são as mães. As inseguranças de outrora se desfizeram diante da certeza do quem sou e do que posso ser. Eu cai e levantei muitas vezes até aqui. Hoje sei do que faço jus. O medo da incompreensão deu lugar a uma espécie de tanto faz, um dar de ombros que em nada se parece com arrogância. Só quem já quis muito ser compreendido, quem já abriu mão muitas vezes sabe o significado de primeiro se auto compreender, depois pensar no resto. O choro sofrido deu lugar a um outro, mais leve. Aquele soluço que se desenha entre a dor e o alívio. Choro e riso.
Um ciclo se fechou no momento em que meu feito foi jogado ao mundo e que os olhos curiosos o fitaram. Enquanto a "minha criança" era copiosamente observada, eu também era. Ao olhar das pessoas mãe e "filha "eram idênticas e igualmente novas. Misteriosas. Passíveis de observação e descoberta, como tudo que nunca foi visto antes. Ali, no momento do parto, eu vi no olhar do outro que eu realmente não sou mais a mesma. Como a canção diz, hoje sou fera, bicho, anjo e mulher. Sou tanto minha mãe, como também minha filha, irmã, menina. E minha. Só minha. Porque eu já sei brincar com o tempo. Já sei desconfiar dos intentos. Já sei ouvir meu silêncio. Já aceitei sentir do meu jeito. Já entendi que, de fato, " não tem gaiola que possa me segurar". Já sei abrir mão sem chorar. Já aprendi a querer sem esperar. Já sei pular em queda livre porque na vida, só nos resta ir, ainda que o fim seja o chão. Não importa. Já sei levantar e recomeçar. Já aprendi a brincar de desenhar na neblina e ver pedaços do futuro. Sem pressa. Já entendi que meu amor é de decibéis incalculáveis. Não mudo. Ouça quem puder. Sou puro coração, como os que agora tenho tatuados no corpo. Só ainda não sei me despedir, mas aqui, o tempo fala por mim: tchau, Mel.

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