domingo, 3 de setembro de 2017

Carta para Valentina


Eu sonhei com a sua chegada antes mesmo da sua mãe abrir o envelope do laboratório.
Dezembro de 2016. Um sonho enigmático como tantos outros que tenho diariamente.
Uma moça muito bonita te deixava comigo e dizia que confiava que eu poderia cuidar de você. Eu não entendia, mas olhava para seus olhos vivos e me encantava. Eu tive medo, mas no sonho você sorria e eu devolvia o sorriso. Você já tinha me conquistado. Eu já te amava desde aquele momento. 
Quando sua mãe me deu a notícia eu quis gritar para o mundo ouvir que sim, eu já sabia. Você já era minha. Depois veio toda especulação possível e inevitável sobre o seu sexo, as cores do seu enxoval e eu sabia, mas mantive o nosso segredo. Porque desde o momento em que você me fitou e disse que ia chegar eu sabia que seríamos cúmplices. 
Você deixou a sua avó em estado de graça com a possibilidade dela fazer todo tipo de mimo e frufrus. A sua avó é a pessoa mais amorosa e dedicada que já conheci nessa vida. Te ensinarei tudo que aprendi com ela. Tudo. A sua avó é foda, Valentina. Ela é o maior referencial feminino que você pode ter. Ouça quando ela te der um conselho e nunca, nunca mesmo duvide das previsões dela. São certeiras. 
Vou te ensinar a respeitar os mais velhos. Porque antes de nós sermos, elas e eles foram. Abriram caminhos. Facilitaram nossa chegada. Toda reverência é pouca. Vou te ensinar a praticar a escuta. É importante ouvir para entender. Ouvir para discordar. Ouvir para fortalecer. Ouvir para mudar de ideia. Ouvir. E falar quando você tiver vontade. 
Vou te ensinar a dançar. Toda vez que sua tia se sente borocoxô ela dança. Dance quando quiser, baby. Dance e sinta todas as células do seu corpo vibrarem. Dance e espante qualquer sentimento ruim. Uma dica: dance qualquer música da Beyoncé. 
Você poderá ficar "morando" no meu quarto como seu irmão faz. Pode ligar a luminária e deitar na cama para ler Turma da Mônica. A minha coleção é de vocês também. Te apresentarei os discos e livros mais fodas que tive a sorte de ouvir e ler. Vou te ensinar a cantar no chuveiro, na rua, na frente do computador. Ah, não vou te dar um computador. Nem um celular, tablet, nada disso. O mundo é ainda mais louco depois que essas ferramentas surgiram em nossas vidas, Valentina. As pessoas perdem boa parte da vida conectadas em um mundo virtual que limita nossas subjetividades, nossas formas de ser e estar com o outro. 
Vou te ensinar a meter o dedo no foda-se quando um cara não curtir sua foto, ou visualizar uma mensagem e não te responder. Eis uma das tantas loucuras do mundo virtual. Não ligue. Vá viver. A vida está para além das redes sociais. Não fique suscetível a vontade alheia. Faça sua vontade. Não se submeta. Não abaixe a cabeça. Não aceite menos do que você merece. 
Te darei o disco da Gal que ouvi incansavelmente quando estava sofrendo por um carinha. Você vai gostar. Sofrer por amor é ruim, mas é bom. Um dia te explico. Te darei vários caderninhos iguais aos que tenho para que você possa escrever, botar para fora o que acontece na sua mente e no seu coração. Escreva, baby. Te acolherei na tpm, no muxoxo, na raiva, na mágoa, nos surtos. Te levarei para ver o por do sol, para passear na feira livre, para tomar banho de cachoeira. Te darei um roupa igual a minha para tirarmos várias fotos estilosas.
Te ensinarei a ter amor próprio. A amar cada pedacinho seu e desenvolver o autocuidado. 
Vou te ensinar a ver o mundo com leveza, mesmo com todas coisas bizarras que acontecem.  Te ensinarei a a rir de si mesma. A ter fé. 
Te ensinarei a não ter medo de ser mulher, mesmo com todo perigo que nos ronda. Mesmo com toda dor. Estamos juntas, Valentina. Nos fortaleceremos e caminharemos de mãos dadas. Sempre. 
Amanhã, quando você chegar, a lua estará crescente e eu acho lindo que você seja do signo de Virgem. Como seu tio. Como um dos meus melhores amigos. Você vai ser foda, Valentina. Seu nome já anuncia. Seus olhos já me diziam. Farei seu mapa astral e te ensinarei a entender os efeitos das conjunções astrais. 
A sua mãe me escolheu para acompanhar a sua chegada e eu não posso negar o nervosismo que sinto. Serei uma das primeiras pessoas a lhe ver aqui, do lado de cá. Uma honra. Eu quis recuar, mas de ontem para hoje senti que não posso deixar de estar lá para te receber novamente. Você me escolheu desde aquele sonho que me deixou zonza. Eu vou, Valentina. Mal posso esperar para estarmos juntas. Vem, baby. Vem com toda luz que já é sua. 

Com todo amor,

Da sua tia. 

sábado, 19 de novembro de 2016

Distante é melhor que perto.

Eu tinha prometido não escrever mais nenhuma linha relacionada a você.
Tinha prometido não alimentar nenhum pensamento, não ruminar o não feito.
Eu planejei com muita vontade esquecer. Mas aí...Não diria que falhei, que fui uma completa idiota. Não chega a tanto. 
Você me pegou de surpresa as 07:56 da manhã com uma mensagem idiota, meio pretexto para puxar papo, meio nada com nada, coisa pouca. Bem seu jeito. Eu deixei. E lá ficamos durante o dia todo falando sobre várias coisas e nada ao mesmo tempo. Essa intimidade que ainda existe entre nós me deixa agoniada. Você entra sem bater na porta e eu não te coloco pra fora. Eu até mesmo te ofereço um café, meu sofá, minhas almofadas.
Você fica. Mas como sempre, você fica no seu tempo. Do seu jeito. Depois vai embora sem dar tchau. Eu já vivi essas cenas tantas vezes que fico sem saber por que diabos ela está acontecendo de novo. Que espécie de trilogia de terror é essa, que carma, que inferno. Que nada. A verdade é que não tem nada demais e eu sei que não. Eu vejo lucidamente que não, mas como eu ia dizendo, você entra na minha casa, se esparrama no sofá, pede uma cerveja, tira a camisa, joga as almofadas no chão. Você bagunça. É isso. Você provoca uma bagunça. E, cá pra nós, eu suspeito que você sabe de tudo isso, mas sadicamente se diverte. Como sempre. 
Quando dei por mim já fazia dois dias que você estava por aqui. Dois dias. Onde eu estava com a cabeça quando permiti? Dois dias trocando mensagens que, porra, não mudam nada em nossas vidas. Nada. Eu não estava interessada em saber dos seus planos, mas deixei que me contasse. Não estava interessada em me envolver nas suas questões, mas fiquei preocupada. Não queria alinhavar os fios soltos dessa sua forma de ser para tentar te entender. Você faz questão de soltar os fios para usá-los como tentáculos. É o seu charme, seu jogo. Mas hoje isso não serve mais pra nada. Não somos mais nada. Esforço em vão. Cansei antes de começar. Repeti várias vezes para mim mesma: isso não quer dizer nada.  Porque não era. Porque não foi. Porque não é. 
Quando finalmente você decidiu ir eu senti um alívio imenso. Eu diria tudo isso olhando no fundo dos seus olhos. Cara, como foi bom quando você foi embora sem dar tchau. Eu te agradeço. A última mensagem já prenunciava o tchau silencioso. Eu te conheço bem. E, pela primeira vez, fiquei feliz quando notei os sinais da sua partida.  É que eu queria muito que você fosse embora. 
Você me deixou uma ressaca imensa, uma bagunça desgraçada que se avolumou devido ao estado de espírito em que você me encontrou. Tpm, lua cheia, vida corrida, mudanças, trabalho, várias informações ao mesmo tempo. Você me fez parar na frente do espelho e colocar as duas mãos na cabeça, como se fosse possível parar o redemoinho existente na minha mente. Você trouxe de volta aquele misto estranho de sentimentos que eu sentia quando estivemos juntos. Não foi bom. Eu não sinto a menor saudade disso. 
Mas você foi embora e eu respiro aliviada. Leve. Preciso te dizer que hoje, quando ainda arrumo a bagunça, ajeito os livros na estante, jogo fora as bitucas de cigarro e mudo os lençóis da cama, o que fica é a certeza de que não é mesmo para ser você. Não há razão de ser. Não é para ser você e poxa, que bom que não. Que alívio constatar que não. Não é você, meu bem. Quanto levou para eu ratificar isso. Não é você porque hoje eu sou mais eu. Não é você porque foi necessário o seu breve retorno para eu perceber que nessa história distante é melhor que perto.



sábado, 13 de agosto de 2016

Eu voltei, amor.

Na noite passada revi alguns filmes da minha vida. Não estava na minha programação revirar as gavetas das minhas memórias, mas fui pega de surpresa. Quando dei por mim, estava emaranhada em pedaços de cenários que não me encaixo mais.
No passado eu amei um bocado. Amei de um jeito insano. Amei sem limites. Mas isso é papo para outro texto. No passado eu tinha muito a dizer e não sabia como. Daí eu escrevia loucamente. Colocava nas linhas tudo que eu sentia, todas as sensações complexas demais para serem ditas a quem deveria ouvi-las. Minha voz não ecoou. Meu coração, sim.
Ontem eu lembrei o quanto era lindo quando eu paria um texto e dizia aos quatro ventos tudo que estava entalado no meu interior rubro dourado. Era forte. Era pesado. Eram pedradas de amor. Eu era muito linda quando sentia e, consequentemente, escrevia. Fiquei pensando sobre as razões pelas quais deixei de escrever. Será que sinto menos? Será que virei pedra? Porra nenhuma.
Nada será como antes, mas eu permaneço a mesma. Bem mais madura. Com um tanto de aprendizados na mala. Menos ansiosa. Mais solta. Sempre e cada vez mais intensa. Sempre amor. 
É, eu voltei, amor. Sozinha. Minha. E é para ficar. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Ei, você que já esteve em minha vida! Leia!



05:30- O alarme do celular tocou pontualmente. Ignorei. Mais dez minutos me entrelaçando no lençol, tentando ficar invisível aos gritos estridentes das responsabilidades. Eu tenho a estranha mania de me enroscar em coisas e/ou pessoas enquanto durmo. Abraço, cheiro, aperto, deslizo. Feito um gato, alguém diria.
05:40 - Nova investida do alarme. Ignorada, claro. Iniciei um sonho meio sem graça, sem cor, mas eu estava nele e isso bastava. Não sabia mais onde estava o meu prendedor de cabelo já que, a essa altura, eu já o havia arrancado para poder viver melhor no sonho. Cabelo ao vento. Uma leoa no meio de lençóis floridos.

05:50 - Personagens já conhecidos da minha trama surgiram no meu sonho. Não sei quem os convidou. Não sei qual a função deles. Não que eu seja radical, mas na minha cabeça se uma coisa deixa de ser é bem pouco provável que ela volte a ser. Se eu te amei um dia e esse amor acabou, veja bem, não é ruindade ou qualquer coisa do tipo, mas eu não acho provável que eu volte a te amar. Porque o meu movimento de amar é tão intenso que eu gasto todos os meus cartuchos de uma só vez. Não sei medir. Viro kamikaze. Amo em toneladas.

06:33 - Acordo atônita. Sonhei que desaprendia a amar. Tentava, tentava e não conseguia.  Nenhum esforço conseguia arrancar dois contos de amor. Nada. Ficava inerte. Sem cor. Sem reação. Uma parede cinza.
06:40 - Mergulho a cabeça no travesseiro. Fecho os olhos com força. Quero voltar pro sonho. Quero refazer o percurso. Reviver a história.
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12:08 - Acordo levemente embriagada. Bêbada, talvez. Atrasada, com certeza. Com o cansaço de quem lutou numa guerra secular. Nada de armas, espadas e afins.  Razão e emoção. Mente e coração. Ser e não ser. Querer e não querer. Não lembro ao certo tudo que aconteceu nas quase 7 horas de sonho-filme da minha vida. Apenas pedaços de imagens finais ficaram marcados em minha memória.  Eu e meu passado. Eu e cada pessoa que esteve nele. Abraços apertados. Beijos quentes. Reveillon em meu coração. Mais abraços. Eu sorridente, me despedindo de cada pessoa. Tchau, amor. O coração bombando forte. Eu indo embora com os olhos nadando no meu próprio rio. Feliz. O amor está aqui. Eu amando de novo. Eu arrancando a roupa de kamikaze. Porra nenhuma! Não morro. Renasço. Eu amando lá e cá. Eu inundada em amor. Eu amando diferente. Eu sendo amor. Eu dando amor. Eu amando em liberdade. Amor leve. Amor sem apego. Amor sem prisão. Amor sem querer pra si. Amor sem culpa. Amor sem data de validade. Amor livre. Amor, amor, amor. Amor de muito.

Quis escrever em algum muro da cidade o que agora deixo aqui:

Ei! Você que já esteve em minha vida, deixa eu te dizer. Lhe  amo. Pode ir, não precisa voltar. Pode sumir, não estar, deixar de ser, mudar, partir. Não importa. Voe! Eu te amo. Voe!

Ass: Mel


Pra ler ouvindo: Passarinho - Curumin

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Carta para quem já me fez chorar


Olha só, deixa eu te dizer, eu não odeio você. 



Te digo isso, assim, dessa forma direta, por ter certeza do que sinto. Eu seria leviana e ridícula se te dissesse que não detesto algumas pessoas nessa vida. Sim, algumas. Transito entre não ter apreço e ignorar. Confesso para você que, na maioria das vezes, eu prefiro ignorar a detestar. Odiar dá trabalho e, veja bem, eu não acho que ninguém que eu julgue ruim mereça algum esforço da minha parte. Então, não odeio. Ignoro. Desprezo. Esqueço. 

Mas isso não aconteceu com você. Eu já até tentei, mas não consegui. Quando estamos no cume da montanha de dissabores a tendência é abrir a gaveta do ódio e vestir armaduras pesadas para dar força ao ato de odiar. Todo mundo tem essa gaveta no armário. Eu também tenho. Em todas as vezes que senti o vento frio que você soprou em meu rosto contrastar com o calor que eu sentia por dentro, eu pensei em pegar a minha melhor armadura e te agredir. Odiar é agredir. Quando odiamos desfiguramos o outro numa busca insana de desfazer o que conhecíamos, para justificar o engodo de não reconhecer uma presença que, sabe-se lá, se um dia existiu.  Odiamos para diminuir o peso do engano. Para disfarçar a tendência ridícula de fantasiar as pessoas. Odiamos para fazer valer a condição de vítimas. Para vingar as lágrimas derramadas. Odiamos para validar a sensação sádica de sofrimento intenso que contorna as afetividades não vingadas.

Eu te odeio tanto que não quis que você sequer imaginasse a tela desfigurada que fiz da sua pessoa, num dia em que enlouqueci ao ver meu coração em pedaços no chão do meu quarto. Te odeio tanto que contrario a lógica que determina os modelos de relação tidos como "comuns" e, quando me perguntam pela sua pessoa, me limito a sorrir e dizer que você está bem, mesmo não tendo notícias suas.  No fundo, ao responder, eu espero que você esteja muito bem. É que eu te odeio tanto que não lhe desejo mal algum. Nunca desejei. Não acho bacana te arremessar pedras. Te odeio de uma tal maneira que não gostaria de te ver com machucados provocados por mim. Eu não gostaria de te deixar uma cicatriz, ainda que ela fosse "invisível" a olhos nus. Você enxerga alguma cicatriz em mim? Te odeio tanto que não sei da sua vida, não quero saber, mas te ouviria atentamente por horas, caso você quisesse me falar sobre. Te odeio tão absurdamente que engano minha memória e bloqueio todas as lembranças. Todas. Boas ou ruins. Que é para eu não ter um parâmetro de comparação que me leve ao abismo de te odiar. Te odeio tanto que  sofri quando vi morrer aos poucos a muda de hibisco que eu plantei para você no meu jardim. Eu não queria, nem quero que você morra. Por favor, não morra. Não saberei lidar com isso. Te odeio tanto que desejo que você encontre alguém que te faça chorar, mas que, ao contrário de mim, você tenha sabedoria para entender que derrubar uma, duas, ou centenas de lágrimas faz bem. Te odeio tanto que desejo que, depois de descer a montanha de dissabores, você possa escrever uma carta como essa para quem te fez chorar. 

A verdade é que a minha estrutura não é tão forte quanto parece, mas nada é tão ruim assim. Tenho passarinhos na janela, um jardim, livros, música, latas de tinta, doces e um coração que vive numa enorme gaiola dourada. Aberta.  Eu escolho não te odiar porque pesa o coração. Não alimenta. Só pesa. Não te odeio porque prefiro dar de comer em dobro ao meu coração, ao invés de te cobrar que faça isso. Alimento por mim e por você. Eu não te odeio porque abrindo as portas para o ódio eu fecho as portas para você. E para mim também. Você está no álbum de fotografias que eu não tiro da caixa, na parede de memórias que eu passo os olhos rapidamente ao longo do dia e deixo ficar no mesmo lugar. Eu não te odeio porque de uma forma ou outra você mora nessa estrutura forte e frágil que não reconhece outra forma de viver se não for amando. 

Fica em paz na sua paz.

Um beijo. 

terça-feira, 5 de maio de 2015

Paçoca de amor.



- Acredito que seja uma crise mundial, tipo essas crises econômicas, sabe? Criolo falou só de São Paulo, mas não há amor no mundo todo. Se bem que, a prima de Bia está morando no Canadá e vira e mexe está namorando sério com alguém. Namoro sério! Coisa séria! De declaração no Facebook e tudo. Talvez ir para o Canadá seja uma saída. Você acha o quê?
- Cê tá falando sério?
- Lógico! Você vai me dizer que não quer amar e ser amada? Ouvi da minha terapeuta que precisamos correr atrás do amor, sair da inércia.
- Deus me livre dessa disposição.
- Mas os tempos mudaram. Não dá mais pra ficar esperando, acreditando que um dia vai chegar o amor na nossa porta. E a concorrência? Imensa. É desleal. Não acredito que você ache mesmo que, na atual conjuntura, possa ficar assim, de pernas cruzadas. Reaja!
- Detesto quem argumenta as coisas trazendo esse " na atual conjuntura". Me soa falso. Discurso de político ou de pseudo intelectual extremamente atualizado sobre a realidade. Ridículo. Sabe de porra nenhuma. Não existe atual conjuntura porque é impossível homogeneizar a realidade. Minha conjuntura não é a mesma que a sua, baby. 
- Mas a realidade precisa ser trazida a tona para que possamos compreender os fatos. Para que possamos nos posicionar. Como você pode achar que as coisas não estão estranhas? Como você pode ignorar o fato de que tem mais mulher do que homem no mundo? Como você pode não se incomodar com a falta de amor? Como você consegue viver nesse mundo a parte? Eu insisto: reaja! Vamos a luta!
- Prefiro ficar aqui mesmo, viu? Suave na nave.
- Mulher, o tempo tá passando! Eu não acredito que isso não te preocupe. Durmo e acordo pensando nisso. E todo mundo que conheço está na mesma. Afinal de contas, todo mundo quer amor. Todo mundo!
- Jura? Eu também quero, mas deixa eu te dizer. Eu sou preguiçosa demais para correr atrás de qualquer coisa que eu não acredito. Não, eu não acredito nesse amor desesperado. Nessa busca incessante por um argamassa forte que tape buracos sentimentais. Isso é de outra ordem que, veja bem, eu não acho que seja falta de amor. De um pedreiro, talvez. Não sei. Mas quando alguma coisa não vai bem na minha estrutura eu não chamo ninguém para fazer reformas. Eu mesma faço. Eu não acho que preciso correr atrás de sentimentos porque no meu mundo eles chegam e ficam se assim quiserem, assim como as pessoas. Quando não querem ou não devem ficar, eu os deixo ir. Soa frio, né? Impessoal. Eu estou longe de ser fria, mas acontece que não aceito ser engaiolada. Por que, então, eu tentaria engaiolar sentimentos ou pessoas? Sem sentido. Me incomoda a falta de amor, sim, mas não esse aí. Acho preocupante a falta de amor de graça. Daqueles que damos porque queremos dar e ponto. Amor fraterno. Amor próprio. Amor leve. Amor suave. Imagina que louco se aprendêssemos desde cedo a preparar e comer do nosso próprio amor? Unir todas as múltiplas formas de amar que carregamos, misturar com água e comer de mão. Todos os dias. Sempre ao acordar, durante as refeições e antes de dormir. Seria lindo. E, consequentemente, seríamos amor. Sabe uma coisa? Vou começar a preparar e comer de mão a minha paçoca de amor enquanto vejo a banda passar.
- Preguiçosa. 
- O amor e a preguiça são parentes, otária. Procure saber. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Problema seu.




É que eu me apego aos detalhes e não ao todo da coisa. É assim desde que me entendo por gente. Não me interessava tanto a boneca imensa que meu padrinho me presenteava. Eu parava no detalhe do vestido, dos sapatos, na cartela de cores da caixa, nos olhos mortos que pareciam vivos quando eu sacolejava a boneca, nos cílios imensos e curvados que me faziam pensar que um dia eu poderia usar o estojo de maquiagem de mainha. Eu observava a expressão do rosto do meu padrinho e da sua esposa. A evidente impaciência dela que contrastava com a amorosidade dele em me pegar no colo e me ajudar a rasgar a embalagem. Devia ser estranho para quem me presenteava perceber que eu não me empolgava com o todo, mas sim, com uma parte. Estranho e constrangedor, talvez. Ou não. 
Não é meu intento constranger quem quer que seja, mas não sei me portar de outra forma se não observando. Eu tenho a estranha mania de observar mais do que falar e ao longo do tempo percebi que isso era um problema e uma solução.
Certa feita, lá na minha infância, um amigo de mainha me chamou de "criança estranha". Assim, na lata, sem nem me dar um saquinho de jujuba para começar o papo. Do alto dos meus 8 anos de idade eu custei a entender a explicação que o tio me deu, mas que ecoa viva na minha cabeça até hoje: "Por que você não é como toda criança que brinca e só brinca? Por que parece que você está observando todo mundo o tempo todo? Não ri de tudo, não faz questão de brincar com todo mundo. Você é uma criança estranha.  Pare com isso, ou ninguém vai gostar de você!"
Eu não chorei quando levei essa pedrada. Ouvi, olhei bem no fundo do olho dele para ver se através da retina eu encontrava a tradução daquilo tudo, sorri um sorriso que não era amarelo, mas também não era vermelho e sai. Fui terminar de colorir uma mandala que o amigo hippie do meu irmão mais velho tinha me dado. Demorou um bom tempo para que eu entendesse que o tio tava certo. Eu era uma criança estranha e ele, um adulto otário. Ponto para mim.
Eu também não levei essa pedrada para terapia. Achei uma puta perda de tempo. O que eu poderia ouvir diferente do que eu já havia observado/pensado? Certamente eu sairia da terapia achando que feliz era a Luana, a menina mais certinha da escola, sempre sorridente, obediente, nunca ficava emburrada. A Luana parecia dormir e acordar feliz, que nem os personagens de comercial de margarina.  A voz doce, o cabelo arrumado.  Luana nunca dava respostas tortas e se te conhecesse hoje em menos de meia hora declarava amor eterno. A mãe da Lu ensinou que não existe essa coisa de não gostar. O certo é gostar de todo mundo. Puta falsidade. Luana não tinha reflexões existenciais em seus 8 anos de idade, mas eu tinha. Várias. Tantas que me fizeram saber o caminho exato para buscar a maleta de primeiros socorros e tratar dos machucados pós pedradas. Sem muxoxo. Sem chorar no colo de mainha. 
Eu deveria ter pensado melhor no que o tio me disse e ter me tornado uma criança "normal" para, quem sabe hoje, ser uma adulta "normal". Não deu, tio. Peguei a contramão. Não deu para ser uma adulta "normal", que olha para o todo e não para as partes. Quem enxerga o todo usa, no máximo, lentes de descanso. Quem enxerga minúcias usa óculos fundo de garrafa. Pesa, cansa e dói.  Quem se apaixona pelo todo sofre menos do que quem se apaixona por partes que significam três vezes mais que o todo. É mais fácil jogar fora uma mala fechada do que escolher uma ou duas coisas dentre as tantas que estão contidas nela. Será que o tio entenderia essa minha equação? Acho que não.
Eu não sei gostar de primeira. Nunca soube. Nunca saberei. Não é por mal. Antes de gostar eu observo tanto, sinto tanto, que acabo me apaixonando escandalosamente. Ou não. Mainha sempre diz que o que eu não falo, a minha cara grita. Ela tem razão. Eu até tento, mas não dissimulo o que penso por completo. Minha cara entrega de bandeja, a quem tenha olhos para ver, o que minha boca se recusou a externar. 
Não deu para ser feliz o tempo todo, interagir com todo mundo e ignorar a beleza do silêncio solitário e a leveza que só a seletividade pode dar. A tristeza e o cheiro de piso de madeira que ela tem. A liberdade em não ser e não estar como a maioria espera. Eu não sei ser quem não sou.  Gosto de ouvir o barulho que meu mundo tem e que ninguém pode ouvir. Só eu. Eu não seria mais feliz se tivesse forçado a natureza. Eu não seria melhor se tivesse me tornado uma Luana. O tio me chamaria de estranha de novo se lesse isso. Foda-se, tio. Problema seu. Eu aprendi a dissolver o que me arremessam com aquilo que mais lhe incomodam: meu não ser adequado. 

Beijo, tio.