terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Tempo amigo, seja legal.


O ano nem bem acabou e me pego tentando fazer balanços,  saldão, retrospectivas, enfim, esses clichês que pontuam o suposto fim e antecedem o recomeço. É fato, 2014 não volta mais. Fim.  Já perdi a conta das vezes que ouvi lamentos sobre a efemeridade do tempo, sobre os acontecimentos tristes, as idas, vindas, as chegadas e os fins. Fim do ano sem lamento, retrospectiva, Simone e Roberto Carlos, simplesmente, não é fim do ano.
Eu gosto dessa coisa de fim. Soa  frio, pouco amável, ou qualquer outra denominação que renegue a delicadeza do "fica mais um pouco", mas não desfaz o que eu sinto toda vez que algo termina. Eu sinto. Com todos os poros abertos que é pra sentir nas gotículas do adeus o que um dia foi e não mais será. Sinto em conta gotas. Masoquismo, alguns diriam. É justamente por sentir muito que aceito o fim. Prefiro achar que, contrariando a multidão, é melhor o tapa estalado na cara, do que o abraço impessoal. Prefiro o fim, ao não estar disfarçado de permanência. Eu prefiro o fim para acreditar no recomeço. Acredito que o fim corta o tempo em fatias para gente comer aos pouquinhos essa coisa louca que é existir. 
Preciso concordar com as senhorinhas do ponto de ônibus: " O tempo sempre foi isso aí. Vocês que estão reparando nele agora, mas sempre foi rápido. Ontem eu era como essa menina aí. Olha hoje". O tempo voa, amor. De lá pra cá muitas coisas aconteceram, outras tantas deixaram de acontecer e nesse vai e vem pouco ou nada sequencial, em 2014 eu não senti a concretude do calendário. A sensação era de que eu estava dentro de uma cápsula onde as horas e os dias não eram divididos nos modos racionais de controle do tempo. Eu não lembro ao certo quando era Janeiro e quando absorta em meu aconchego, descobri que já era primavera. Simplesmente, não senti.  
Tenho cá para mim que as coisas permanecem do mesmo jeito para as demais pessoas. O calendário e sua contagem segura. O relógio e o fatiamento minucioso do tempo. Tudo como deveria estar.  Vejo meus amigos eufóricos fazendo planos para o reveillon, as alegrias incontidas, os projetos articulados com hora e data para acontecer no ano que está por vir, as atualizações frenéticas, a busca insana por novidades. O que tem acontecido? O que você me conta? Pra onde você vai? Quais são as novidades?
Ao passo em que os observo não sinto tédio, não os julgo, tampouco penso em rasgar as paredes furta cor da cápsula e pular na cama elástica onde todos brigam pelo suposto "tem que ser". Me limito a sentir o impacto dos saltos chegarem feito onda mansa aqui na distância onde penduro minha rede. Me divirto com a dissonância dos quereres e sentires que convivem lado a lado e digladiam diariamente pela sobrevivência de ser. Percebo a beleza e a bondade da distância e o quanto a desprezamos apegados somente a concretude da sua tesoura afiada. Confirmo a minha teoria de que certas são as senhorinhas. Amam e odeiam o tempo, mas o vivenciam da forma mais sábia: em conta gotas.  As senhorinhas sabem viver. 
Eu até queria, mas não tenho planos para depois do fim. Hoje, meu tempo é outro. Meu cenário também é outro. Brinco com a tesoura da distância, bebo o fel do fim, me lambuzo com o mel do recomeço, espero as ondas frias tocarem as minhas pernas e arrepiarem meus sentidos, faço redemoinhos com a poeira dos que chegam e vão embora, assopro pro vento meu sentires e quereres, sinto em conta gotas. Com força.  Deito no colo de Tempo, ouço seus tambores, danço conforme seu ritmo e deixo ser. 

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

No colo de Kali Ma



Passava das 22h quando peguei o último maracujá que tinha na fruteira, a fim de comê-lo com açúcar, como faço quase todos os dias. Maracujá é uma das minhas frutas favoritas desde a infância seja pelo aroma, o gosto cítrico, como também, e sobretudo,  pela função de ativar intensamente a  coisa que mais gosto de fazer na vida: dormir. 
Nos últimos dias meu sono tem sido cortado. Deito por volta da meia noite, acordo às duas da manhã e só consigo dormir novamente às cinco horas. Nessas três horas em que fico a dispor do tempo, milhões de pensamentos e imagens dividem espaço comigo na minha cama. Me sinto completamente afogada e ao despertar no outro dia, a sensação é similar a uma ressaca marítima. Passo o resto do dia indo e vindo, feito onda mesmo.
Ontem eu estava mais confiante quando parti o maracujá ao meio. Era grande, suculento, cheio. Duas colheres de açúcar não foram o suficiente. Demorei mais tempo que o habitual para degustar minha fruta inteira. Mesmo escovando os dentes, o gosto do maracujá era intenso em minha boca. O cheiro parecia espalhado em todo meu corpo. Deitei na cama e parecia que meu travesseiro tinha sido perfumado com flor de maracujá. Olhei o celular pela última vez, a fim de programar o despertador e ativar o modo silencioso. Apaguei a luminária, fechei os olhos e tentei ignorar a sensação psicodélica de estar dentro de um maracujá. Fechado. 
Não lembro ao certo o que sonhei, tendo em vista que contabilizo ao menos sete sonhos, cheios de detalhes, sons, cores. Em todos o mesmo personagem: uma mulher com a língua para fora, cobras enroladas no corpo, pulseiras, anéis, coroa. Ela me olhava fixamente e lambia a palma das minhas mãos. Minha reação era de plena calma, como a de quem bebeu vários litros de suco de maracujá. A mulher de aparência temível e voz doce, em todos os sonhos repetia o mesmo gesto. No último sonho, após fazer seu ritual a estranha figura segurou meu queixo, passou a mão no meu rosto, sorriu e disse: " pode ir agora".
Acordei com o primeiro raio de sol que adentrou meu quarto. Sem ressaca, sem dor de cabeça, sem marola, sem cheiro de maracujá. Coloquei em um desses sites de pesquisa a descrição da figura dos meus sonhos: língua para fora + sangue+ cobras+ pulseiras= Kali Ma, deusa hindu, negra mãe do tempo. É dela o começo e o fim, mas principalmente esse último. Kali Ma age pela destruição a fim de promover a reconstrução plena. Intensamente ligada ao universo feminino, a deusa negra é responsável por despertar o sagrado que toda mulher carrega consigo. Kali Ma lambeu minhas mãos, símbolo da vida e suas trilhas. A deusa lavou meus caminhos com sua saliva regeneradora. " Deixe o velho ir para o novo e maravilhoso chegar". Leve tudo, grande mãe. Bagunce minhas gavetas, armários. Quebre todas as fechaduras dos meus baús. Rasgue o que não serve e monte uma grande fogueira. Dançaremos juntas.  Só deixe meus maracujás. 

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Céu de manchas

Dizem que tudo que a gente aprende pela primeira vez fica guardado no topo do cume da nossa vida, lá naquele céu de experiências, vivências, sentires, coisa e tal. Uma espécie de telhado que pintamos todos os dias. Telhado da vida. Por mais simples que tenha sido o aprendizado, ele fica. Tipo nódoa de caju. Para tirar dá trabalho e no meio do esforço a gente acaba desistindo e se acostumando com aquela mancha nova que, parece velha, inadequada e, posteriormente, adequada aos olhos cansados e preguiçosos. É do humano essa coisa estranha de se acostumar com o engodo para evitar o desgaste de bater de frente. Os bichos são diferentes.
Dias desses um felino adentrou a minha casa. Pequenino, indefeso, carente. Sua estrutura delicada, devido a sua pouca idade, impedia que pudéssemos pega-lo no colo sempre. Restava ao pequeno caminhar pelo quintal e se abrigar em sua casa. O distanciamento precoce do seio materno fez com que seu choro fosse frequente. Um choro doído, meio agonizante, como o de quem perdeu algo que ainda existe. 
Nas minhas horas vagas passei a observar o felino e sua luta para sobreviver na sua casa nova. Quando caminhava entre as plantas do quintal, o gato olhava para o céu e para o chão com o olhar perdido. Não sei se ele esperava por algo, ou se indagava a razão pela qual ele estava ali, no meio da coisa, na existência que separa o começo do fim. Me peguei fazendo a mesma coisa que ele.
Quando passava entre as minhas pernas o gato não se demorava em minha pele. Sentia o calor, se afastava, sentava ou deitava de frente para mim e demorava o olhar no meu. Eu e minha pele não eram o que ele buscava, ou simplesmente não significavam, naquele momento, a necessidade maior que seus olhos queriam comunicar. Não é qualquer calor que descongela o iceberg que todo mundo carrega consigo. Quando eu o pegava no colo, o felino insistia em me olhar nos olhos. Incisivamente. As unhas afiadas arranhavam minhas mãos, mas não porque a vontade fosse escapulir das mesmas. O gato unhava lentamente, como quem tenta escrever uma mensagem, mas teme não ser compreendido. Unhava e me olhava. Unhava e me dizia. Unhava e eu entendia. Com o tempo a gente entende o indizível porque este, quando dito, é feito grito: chega aos sentidos, antes mesmo de chegar ao campo concreto do entendimento.
Obviamente, nem sempre ele queria estar perto de um humano. Nessas horas de reclusão, o gato preferia o sol ou a sombra de uma das palmeiras do quintal. Não olhava para nada além da sua própria sombra, ou alguma das bolinhas coloridas que promoviam a sua tímida diversão. Os chamados do meu sobrinho, o barulho da televisão, os sons das vozes dos humanos, nada tinha o poder de tirar o felino da sua imersão. Me parecia evidente que o bichano não queria entender, nem ser entendido. Bastava estar e, quem sabe, se adaptar. A frieza de uns, ou a efusividade de outros que o apanhavam nas mãos, não parecia ter importância, mesmo que o desagradasse. Os humanos é que possuem essa mania chata de querer a todo custo entender os outros, como quem procura significado no dicionário. Bicho, não. O que de fato importa para eles é sentir. 
Aos poucos eu fui me apegando a figura do gatinho e sentia falta do seu olhar, bem como das unhadas em minhas pernas e mãos. Dava vontade de ficar uma manhã inteira deitada numa esteira conversando com ele através dos olhos e do tato. Eu, ele, o céu, o sol, as plantas, o chão e o indizível. Dia após dia os passeios no quintal foram perdendo a frequência. O gato preferia o céu de plástico da casa e o chão macio de almofadas. Quando raramente ele passava entre as minhas pernas, fazia questão de fincar com força as unhas, como quem quer gravar de forma bruta uma mensagem na madeira. O olhar permanecia incisivo, mas passou a ter um ar de impaciência. Você me entende, humana? Sentia um frio no coração toda vez que ele me olhava porque, no fundo, eu sabia exatamente o que ele queria me dizer. 
Dias se passaram e eu comprei uma esteira para deitar com meu amigo felino e, quem sabe, desfazer o gelo e estreitar nosso laço de amizade. Fui buscá-lo em sua casa e lá estava ele fitando o céu de plástico que naquele momento era tão frio quanto seu corpo morto. Não tive reação alguma a não ser abrir a esteira, deitar e olhar para o céu. O felino, com o céu de plástico. Eu, com o céu de nuvens e sol. Ambos calados, em silêncios diferentes. Não dizer, também é dizer. O céu e o chão nos separando da existência que nos aproximava. Estar é, também, não estar. O indizível expresso na minha pele. As pessoas ficam quando e porque querem ficar.  Invariavelmente, deixam impresso as marcas do que são e do que foram, dos significados que tiveram e que nunca serão apagados porque são como nódoas, feito a que hoje figura no meu céu e que eu jamais vou querer apagar. 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Miopia e sonolência.


06:55. Do lado de lá, uma voz matinal vigorosamente animada. Elétrica. Do lado de cá, a velha rouquidão preguiçosa e o desejo de dormir um dia inteiro.

- Já tá acordada?
- Isso não é uma gravação, meu bem.
- Já vi que acordou. Dormiu bem?
- Eu ainda não dormi. Cheguei tem sei lá, dez minutos. Quando você ligou eu estava na introdução do sono. Aquele momento em que as vozes vão ficando distantes.
- Desculpa, mas é que  você esqueceu um livro de fotografia com várias anotações em papel rosa  e verde neon e um marca página colorido. Não tem seu nome, mas tenho certeza que é seu. Não sei pronunciar o nome do autor, nome estranho, alemão, sei lá.  O livro é velho, tem durex na capa. Parece uma bíblia, se não fossem os corações  desenhados no livro todo. Você que desenhou?
- É meu. Era meu, aliás.
- Como assim era seu? Não vai querer mais? Passe aqui para pegar, ou eu mando um dos meninos levar.
- Não precisa, baby. Dê para alguém daí, ou da universidade. Se quiser, deixe na sua estante do lado dos discos de Caetano, certo?
- Que porra de Caetano, menina? É seu! Parece importante, afetivo, sei lá. John disse que tem até seu perfume nas páginas. Por que você não coloca seu nome nos livros, heim? 
- Fui ao oftalmologista semana passada. Aqueles óculos estilosos serão trocados, baby. Estou me desapegando das lentes de vidro e das armações antigas. Queria usar lentes elásticas, sabe? Daquelas que vem na caixinha. Mas os meus olhos ficaram irritados com a experiência de tirar e colocar uma película transparente. Eu preferia elas do que as lentes de vidro. Rasgar dói menos que quebrar, sabia? O impacto de quebrar é irreparável, Nana. Tenho experiência nisso. Ninguém te avisa quando vai acontecer. Dói todos os sentidos. Eu prefiro costurar do que colar porque a costura pode até se abrir, mas precisa de um esforço.  Eu confio nas costuras e no lixo. Se ainda servir, a gente costura. Se não, joga no lixo. 
- Heim? Você tá com sono. Volte a dormir.
- O médico disse que minha miopia aumentou muito, Nana. Nem sei ao certo o que foi que eu vi/li esses tempos. Dê o livro, certo? Eu geralmente não grafo meu nome justamente para isso. Para que tenham outros donos, talvez  até com lentes melhores que as minhas. Desconfio que livro é uma coisa para ser passada, sabe? Eu sinto assim. Livro é tipo um abraço só que com muitas páginas, braços, tentáculos. Coisa assim. Abraça o cérebro e o que mais quem lê deixar. Eu nunca comprei, nem dei um livro em vão, Nana. Sempre com coração. Lembrei de Frida Kahlo. Ela também era míope, sabia? Será que tem como fazer as lentes dos meus óculos em formato de coração, Nana? Comprei umas tintas aí. Vou fazer umas artes no meu quarto. Tudo vermelho e amarelo. Qual a cor do amor, Nana? Sabe de uma coisa? O amor é da cor que a gente vê. Não importa a miopia, as lentes, nada disso. Isso quer dizer que eu serei sempre uma míope portando óculos. Sempre cega, mas de amor. Vou dormir. Um beijo. Ah, dê o livro!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Tchau, Mel.

Sempre que eu me pego pensando sobre o tempo fico intrigada com a sua volatilidade e sua função transformadora. Na infância, quando a gente só lembra do tempo no momento em que algo está para acontecer ou em que algo acaba, tudo parece mais fácil. O tempo é amigo e vilão, mas nesse intervalo aí a gente esquece da existência dele. Deixa passar. E, claro, ele passa até que nos tornamos adultos e o tempo se torna uma bomba relógio prestes a explodir no nosso colo. Tempo para cumprir,  para ser, para deixar de ser,  para esperar, para ver o fim chegar. Tudo passa pelo crivo desta coisa absurda e impalpável que, mesmo assim, dorme e acorda ao nosso lado. Literalmente.
Há pouco mais de dois anos atrás eu era uma menina cheia de quereres e expectativas, portando algumas folhas escritas nas mãos, muitas teorias e curiosidades na cabeça e o desejo latente de que alguém se interessasse por tudo isso. O tempo era meu inimigo posto que, entre escrever e esperar o resultado, eu vi o mundo girar várias vezes. Era o futuro incerto tirando a paz do presente. Alguns dias depois eu era a menina feliz por ter as suas páginas lidas e por ter sido escolhida. O futuro acenando para mim. Um abraço que eu teria que correr mais um pouco para ganhar, mas que também poderia não acontecer. Era preciso confiar no tempo.
Há um ano atrás eu estava vivendo o desafio de sair do meu conforto em prol da minha missão. Deixei para trás o meu aconchego, o carinho das pessoas próximas, dentre tantas outras coisas que só hoje possuem o sentido real que merecem. Coloquei na mala uma porção de livros, cadernos, uma câmera, papel, tinta, lápis de cor e amor. Aprendi que abrir mão das coisas seria a minha atividade diária a partir daquele momento. Fui sem olhar para trás, confiando no tempo porque ali, naquele momento, ainda que malvado, ele tinha que ser meu aliado. Esperar, confiar, esperar, perceber, esperar, germinar, esperar, voltar. A imagem do  futuro se mostrava embaçada e não tinha lente que me possibilitasse enxergar nada ao meu redor. Uma neblina que se confundia com o efeito do meu choro, mas que eu sabia que tinha pai: o tempo. 
Há oito meses atrás eu estava novamente exilada, mas dessa vez em um outro lugar. Era preciso abrir mão novamente. A menina que tinha lido e escrito muito, descobriu que precisava ler e escrever mais. Sozinha. Literalmente. A neblina aumentava diariamente e o choro de igual maneira. Só quem abre mão sabe o que é deixar ir sem saber se vai ter uma volta. Mais que isso, sem se despedir. Nesses dois anos, todas as vezes em que eu precisei abrir mão de algo eu não fiz uso do tchau. Não foram poucas vezes em que eu engoli o choro, vesti minha armadura e sai com a alma em frangalhos, acreditando que ao menos a minha cama seria um bom lugar para reconstruir o que estava totalmente destruído. Nunca um adeus. 
Entre livros, escritos, silêncios, choros e soluços eu me apaixonei e amei demais. Eu não sei, nem nunca saberei ser de outro jeito. Sou da tribo dos que sentem em volume alto. Amei querendo gritar, mas me mantive calada. Deixei no mudo. Era ele, o tempo, me indicando que meu grito poderia não ser entendido. Ele bem estava certo. Quem sente em latências carrega consigo o carma de ser incompreendido. Calar o querer não é covardia. É a plena coragem de segurar algo que é seu e engolir, caso seja necessário. Uma cadeia alimentar onde nada morre, só deixa de ser porque ele, o tempo, se encarrega.
Há dois dias atrás a  neblina se dispersou. As poucas folhas deram lugar a um camalhaço volumoso carregado de teorias, saberes, símbolos, cores e amor. Aquele mesmo que eu havia engolido forçosamente e mais uns tantos outros. Amor materno. A menina lá do começo deu lugar a uma mulher bélica no sentido mais real do termo. Não menos doce que antes, mas totalmente empoderada, como são as mães. As inseguranças de outrora se desfizeram diante da certeza do quem sou e do que posso ser. Eu cai e levantei muitas vezes até aqui. Hoje sei do que faço jus. O medo da incompreensão deu lugar a uma espécie de tanto faz, um dar de ombros que em nada se parece com arrogância. Só quem já quis muito ser compreendido, quem já abriu mão muitas vezes sabe o significado de primeiro se auto compreender, depois pensar no resto. O choro sofrido deu lugar a um outro, mais leve. Aquele soluço que se desenha entre a dor e o alívio. Choro e riso.
Um ciclo se fechou no momento em que meu feito foi jogado ao mundo e que os olhos curiosos o fitaram. Enquanto a "minha criança" era copiosamente observada, eu também era. Ao olhar das pessoas mãe e "filha "eram idênticas e igualmente novas. Misteriosas. Passíveis de observação e descoberta, como tudo que nunca foi visto antes. Ali, no momento do parto, eu vi no olhar do outro que eu realmente não sou mais a mesma. Como a canção diz, hoje sou fera, bicho, anjo e mulher. Sou tanto minha mãe, como também minha filha, irmã, menina. E minha. Só minha. Porque eu já sei brincar com o tempo. Já sei desconfiar dos intentos. Já sei ouvir meu silêncio. Já aceitei sentir do meu jeito. Já entendi que, de fato, " não tem gaiola que possa me segurar". Já sei abrir mão sem chorar. Já aprendi a querer sem esperar. Já sei pular em queda livre porque na vida, só nos resta ir, ainda que o fim seja o chão. Não importa. Já sei levantar e recomeçar. Já aprendi a brincar de desenhar na neblina e ver pedaços do futuro. Sem pressa. Já entendi que meu amor é de decibéis incalculáveis. Não mudo. Ouça quem puder. Sou puro coração, como os que agora tenho tatuados no corpo. Só ainda não sei me despedir, mas aqui, o tempo fala por mim: tchau, Mel.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Tocaia.



Sem retrospectiva. Sem reflexão. Sem adeus. Quando 2013 acabou eu nem vi, nem senti. Muito embora tenha sido o ano mais intenso de toda minha vida, eu não sei dizer qual foi o sentimento exato que norteou a passagem entre um ano e outro. Não fiquei para ver. Meti um batom vermelho na boca, soltei meus cabelos, peguei meu copo de cerveja e sai.
Lá se vão quinze dias desse novo ano e tudo se mostra contrário ao que foi antes. Tenho falado pouco, quase nada. Estou rouca, mas meu silêncio é natural. Só falo quando quero. Com quem quero. Minhas cortinas de cílios abrem e fecham vagarosamente enquanto eu apenas observo as pessoas, a vida, o tempo.  Quando o exercício de observar me parece cansativo eu fecho as cortinas e durmo, como uma boa preguiçosa que sou.  
Não estou conseguindo fazer planos. Se me perguntam o que espero para amanhã eu não tenho resposta, tampouco me esforço para ter. Deixo tudo como está. Tenho respeitado muito as minhas risadas e mais ainda as lágrimas que outrora derramei e que hoje só aparecem em um bocejo. Não tenho pensado muito. Estou desprezando a lógica, posto que criei a minha e essa não se enquadra. É circular. Todas as minhas reações seguem o momento, o segundo do instante. Só me interessa o que me afeta. No que tem chegado  em mim com força eu dou beijo de língua. Quente. No restante, um aperto de mão. Frio.
A minha intuição está mais aguçada. Uma flecha rápida e certeira que chega no alvo com força e destroça o centro da coisa. Desprezo o semáforo. Só acredito na minha intuição. É ela quem me diz que muito está para acontecer nos próximos dias e que a surpresa será minha visita constante. Não anseio em saber. Me espreguiço no tempo. Como uma onça deitada à sombra em uma grama verde e úmida eu apenas observo e deixo ser. A natureza tem seu tempo. Fito minhas unhas vermelhas, mexo nos meus cachos bagunçados, canto uma música qualquer, danço no meu ritmo, estalo os ossos, suspiro devagar. Vivo. Sinto. 
Quando chegar o momento não será preciso pensar muito. Serena, intuitiva e silenciosa vou levantar do meu conforto, correr em direção ao alvo e come-lo com mãos, boca, língua, dentes e alma. Lasciva. Voltarei para meu lugar com bochechas, colo e pernas lambuzados. Rindo por dentro, brilhando por fora. Satisfeita, mas não menos atenta. Como uma onça.