segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Miopia e sonolência.


06:55. Do lado de lá, uma voz matinal vigorosamente animada. Elétrica. Do lado de cá, a velha rouquidão preguiçosa e o desejo de dormir um dia inteiro.

- Já tá acordada?
- Isso não é uma gravação, meu bem.
- Já vi que acordou. Dormiu bem?
- Eu ainda não dormi. Cheguei tem sei lá, dez minutos. Quando você ligou eu estava na introdução do sono. Aquele momento em que as vozes vão ficando distantes.
- Desculpa, mas é que  você esqueceu um livro de fotografia com várias anotações em papel rosa  e verde neon e um marca página colorido. Não tem seu nome, mas tenho certeza que é seu. Não sei pronunciar o nome do autor, nome estranho, alemão, sei lá.  O livro é velho, tem durex na capa. Parece uma bíblia, se não fossem os corações  desenhados no livro todo. Você que desenhou?
- É meu. Era meu, aliás.
- Como assim era seu? Não vai querer mais? Passe aqui para pegar, ou eu mando um dos meninos levar.
- Não precisa, baby. Dê para alguém daí, ou da universidade. Se quiser, deixe na sua estante do lado dos discos de Caetano, certo?
- Que porra de Caetano, menina? É seu! Parece importante, afetivo, sei lá. John disse que tem até seu perfume nas páginas. Por que você não coloca seu nome nos livros, heim? 
- Fui ao oftalmologista semana passada. Aqueles óculos estilosos serão trocados, baby. Estou me desapegando das lentes de vidro e das armações antigas. Queria usar lentes elásticas, sabe? Daquelas que vem na caixinha. Mas os meus olhos ficaram irritados com a experiência de tirar e colocar uma película transparente. Eu preferia elas do que as lentes de vidro. Rasgar dói menos que quebrar, sabia? O impacto de quebrar é irreparável, Nana. Tenho experiência nisso. Ninguém te avisa quando vai acontecer. Dói todos os sentidos. Eu prefiro costurar do que colar porque a costura pode até se abrir, mas precisa de um esforço.  Eu confio nas costuras e no lixo. Se ainda servir, a gente costura. Se não, joga no lixo. 
- Heim? Você tá com sono. Volte a dormir.
- O médico disse que minha miopia aumentou muito, Nana. Nem sei ao certo o que foi que eu vi/li esses tempos. Dê o livro, certo? Eu geralmente não grafo meu nome justamente para isso. Para que tenham outros donos, talvez  até com lentes melhores que as minhas. Desconfio que livro é uma coisa para ser passada, sabe? Eu sinto assim. Livro é tipo um abraço só que com muitas páginas, braços, tentáculos. Coisa assim. Abraça o cérebro e o que mais quem lê deixar. Eu nunca comprei, nem dei um livro em vão, Nana. Sempre com coração. Lembrei de Frida Kahlo. Ela também era míope, sabia? Será que tem como fazer as lentes dos meus óculos em formato de coração, Nana? Comprei umas tintas aí. Vou fazer umas artes no meu quarto. Tudo vermelho e amarelo. Qual a cor do amor, Nana? Sabe de uma coisa? O amor é da cor que a gente vê. Não importa a miopia, as lentes, nada disso. Isso quer dizer que eu serei sempre uma míope portando óculos. Sempre cega, mas de amor. Vou dormir. Um beijo. Ah, dê o livro!

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