quinta-feira, 18 de setembro de 2014

No colo de Kali Ma



Passava das 22h quando peguei o último maracujá que tinha na fruteira, a fim de comê-lo com açúcar, como faço quase todos os dias. Maracujá é uma das minhas frutas favoritas desde a infância seja pelo aroma, o gosto cítrico, como também, e sobretudo,  pela função de ativar intensamente a  coisa que mais gosto de fazer na vida: dormir. 
Nos últimos dias meu sono tem sido cortado. Deito por volta da meia noite, acordo às duas da manhã e só consigo dormir novamente às cinco horas. Nessas três horas em que fico a dispor do tempo, milhões de pensamentos e imagens dividem espaço comigo na minha cama. Me sinto completamente afogada e ao despertar no outro dia, a sensação é similar a uma ressaca marítima. Passo o resto do dia indo e vindo, feito onda mesmo.
Ontem eu estava mais confiante quando parti o maracujá ao meio. Era grande, suculento, cheio. Duas colheres de açúcar não foram o suficiente. Demorei mais tempo que o habitual para degustar minha fruta inteira. Mesmo escovando os dentes, o gosto do maracujá era intenso em minha boca. O cheiro parecia espalhado em todo meu corpo. Deitei na cama e parecia que meu travesseiro tinha sido perfumado com flor de maracujá. Olhei o celular pela última vez, a fim de programar o despertador e ativar o modo silencioso. Apaguei a luminária, fechei os olhos e tentei ignorar a sensação psicodélica de estar dentro de um maracujá. Fechado. 
Não lembro ao certo o que sonhei, tendo em vista que contabilizo ao menos sete sonhos, cheios de detalhes, sons, cores. Em todos o mesmo personagem: uma mulher com a língua para fora, cobras enroladas no corpo, pulseiras, anéis, coroa. Ela me olhava fixamente e lambia a palma das minhas mãos. Minha reação era de plena calma, como a de quem bebeu vários litros de suco de maracujá. A mulher de aparência temível e voz doce, em todos os sonhos repetia o mesmo gesto. No último sonho, após fazer seu ritual a estranha figura segurou meu queixo, passou a mão no meu rosto, sorriu e disse: " pode ir agora".
Acordei com o primeiro raio de sol que adentrou meu quarto. Sem ressaca, sem dor de cabeça, sem marola, sem cheiro de maracujá. Coloquei em um desses sites de pesquisa a descrição da figura dos meus sonhos: língua para fora + sangue+ cobras+ pulseiras= Kali Ma, deusa hindu, negra mãe do tempo. É dela o começo e o fim, mas principalmente esse último. Kali Ma age pela destruição a fim de promover a reconstrução plena. Intensamente ligada ao universo feminino, a deusa negra é responsável por despertar o sagrado que toda mulher carrega consigo. Kali Ma lambeu minhas mãos, símbolo da vida e suas trilhas. A deusa lavou meus caminhos com sua saliva regeneradora. " Deixe o velho ir para o novo e maravilhoso chegar". Leve tudo, grande mãe. Bagunce minhas gavetas, armários. Quebre todas as fechaduras dos meus baús. Rasgue o que não serve e monte uma grande fogueira. Dançaremos juntas.  Só deixe meus maracujás. 

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Céu de manchas

Dizem que tudo que a gente aprende pela primeira vez fica guardado no topo do cume da nossa vida, lá naquele céu de experiências, vivências, sentires, coisa e tal. Uma espécie de telhado que pintamos todos os dias. Telhado da vida. Por mais simples que tenha sido o aprendizado, ele fica. Tipo nódoa de caju. Para tirar dá trabalho e no meio do esforço a gente acaba desistindo e se acostumando com aquela mancha nova que, parece velha, inadequada e, posteriormente, adequada aos olhos cansados e preguiçosos. É do humano essa coisa estranha de se acostumar com o engodo para evitar o desgaste de bater de frente. Os bichos são diferentes.
Dias desses um felino adentrou a minha casa. Pequenino, indefeso, carente. Sua estrutura delicada, devido a sua pouca idade, impedia que pudéssemos pega-lo no colo sempre. Restava ao pequeno caminhar pelo quintal e se abrigar em sua casa. O distanciamento precoce do seio materno fez com que seu choro fosse frequente. Um choro doído, meio agonizante, como o de quem perdeu algo que ainda existe. 
Nas minhas horas vagas passei a observar o felino e sua luta para sobreviver na sua casa nova. Quando caminhava entre as plantas do quintal, o gato olhava para o céu e para o chão com o olhar perdido. Não sei se ele esperava por algo, ou se indagava a razão pela qual ele estava ali, no meio da coisa, na existência que separa o começo do fim. Me peguei fazendo a mesma coisa que ele.
Quando passava entre as minhas pernas o gato não se demorava em minha pele. Sentia o calor, se afastava, sentava ou deitava de frente para mim e demorava o olhar no meu. Eu e minha pele não eram o que ele buscava, ou simplesmente não significavam, naquele momento, a necessidade maior que seus olhos queriam comunicar. Não é qualquer calor que descongela o iceberg que todo mundo carrega consigo. Quando eu o pegava no colo, o felino insistia em me olhar nos olhos. Incisivamente. As unhas afiadas arranhavam minhas mãos, mas não porque a vontade fosse escapulir das mesmas. O gato unhava lentamente, como quem tenta escrever uma mensagem, mas teme não ser compreendido. Unhava e me olhava. Unhava e me dizia. Unhava e eu entendia. Com o tempo a gente entende o indizível porque este, quando dito, é feito grito: chega aos sentidos, antes mesmo de chegar ao campo concreto do entendimento.
Obviamente, nem sempre ele queria estar perto de um humano. Nessas horas de reclusão, o gato preferia o sol ou a sombra de uma das palmeiras do quintal. Não olhava para nada além da sua própria sombra, ou alguma das bolinhas coloridas que promoviam a sua tímida diversão. Os chamados do meu sobrinho, o barulho da televisão, os sons das vozes dos humanos, nada tinha o poder de tirar o felino da sua imersão. Me parecia evidente que o bichano não queria entender, nem ser entendido. Bastava estar e, quem sabe, se adaptar. A frieza de uns, ou a efusividade de outros que o apanhavam nas mãos, não parecia ter importância, mesmo que o desagradasse. Os humanos é que possuem essa mania chata de querer a todo custo entender os outros, como quem procura significado no dicionário. Bicho, não. O que de fato importa para eles é sentir. 
Aos poucos eu fui me apegando a figura do gatinho e sentia falta do seu olhar, bem como das unhadas em minhas pernas e mãos. Dava vontade de ficar uma manhã inteira deitada numa esteira conversando com ele através dos olhos e do tato. Eu, ele, o céu, o sol, as plantas, o chão e o indizível. Dia após dia os passeios no quintal foram perdendo a frequência. O gato preferia o céu de plástico da casa e o chão macio de almofadas. Quando raramente ele passava entre as minhas pernas, fazia questão de fincar com força as unhas, como quem quer gravar de forma bruta uma mensagem na madeira. O olhar permanecia incisivo, mas passou a ter um ar de impaciência. Você me entende, humana? Sentia um frio no coração toda vez que ele me olhava porque, no fundo, eu sabia exatamente o que ele queria me dizer. 
Dias se passaram e eu comprei uma esteira para deitar com meu amigo felino e, quem sabe, desfazer o gelo e estreitar nosso laço de amizade. Fui buscá-lo em sua casa e lá estava ele fitando o céu de plástico que naquele momento era tão frio quanto seu corpo morto. Não tive reação alguma a não ser abrir a esteira, deitar e olhar para o céu. O felino, com o céu de plástico. Eu, com o céu de nuvens e sol. Ambos calados, em silêncios diferentes. Não dizer, também é dizer. O céu e o chão nos separando da existência que nos aproximava. Estar é, também, não estar. O indizível expresso na minha pele. As pessoas ficam quando e porque querem ficar.  Invariavelmente, deixam impresso as marcas do que são e do que foram, dos significados que tiveram e que nunca serão apagados porque são como nódoas, feito a que hoje figura no meu céu e que eu jamais vou querer apagar.