segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Ei, você que já esteve em minha vida! Leia!



05:30- O alarme do celular tocou pontualmente. Ignorei. Mais dez minutos me entrelaçando no lençol, tentando ficar invisível aos gritos estridentes das responsabilidades. Eu tenho a estranha mania de me enroscar em coisas e/ou pessoas enquanto durmo. Abraço, cheiro, aperto, deslizo. Feito um gato, alguém diria.
05:40 - Nova investida do alarme. Ignorada, claro. Iniciei um sonho meio sem graça, sem cor, mas eu estava nele e isso bastava. Não sabia mais onde estava o meu prendedor de cabelo já que, a essa altura, eu já o havia arrancado para poder viver melhor no sonho. Cabelo ao vento. Uma leoa no meio de lençóis floridos.

05:50 - Personagens já conhecidos da minha trama surgiram no meu sonho. Não sei quem os convidou. Não sei qual a função deles. Não que eu seja radical, mas na minha cabeça se uma coisa deixa de ser é bem pouco provável que ela volte a ser. Se eu te amei um dia e esse amor acabou, veja bem, não é ruindade ou qualquer coisa do tipo, mas eu não acho provável que eu volte a te amar. Porque o meu movimento de amar é tão intenso que eu gasto todos os meus cartuchos de uma só vez. Não sei medir. Viro kamikaze. Amo em toneladas.

06:33 - Acordo atônita. Sonhei que desaprendia a amar. Tentava, tentava e não conseguia.  Nenhum esforço conseguia arrancar dois contos de amor. Nada. Ficava inerte. Sem cor. Sem reação. Uma parede cinza.
06:40 - Mergulho a cabeça no travesseiro. Fecho os olhos com força. Quero voltar pro sonho. Quero refazer o percurso. Reviver a história.
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12:08 - Acordo levemente embriagada. Bêbada, talvez. Atrasada, com certeza. Com o cansaço de quem lutou numa guerra secular. Nada de armas, espadas e afins.  Razão e emoção. Mente e coração. Ser e não ser. Querer e não querer. Não lembro ao certo tudo que aconteceu nas quase 7 horas de sonho-filme da minha vida. Apenas pedaços de imagens finais ficaram marcados em minha memória.  Eu e meu passado. Eu e cada pessoa que esteve nele. Abraços apertados. Beijos quentes. Reveillon em meu coração. Mais abraços. Eu sorridente, me despedindo de cada pessoa. Tchau, amor. O coração bombando forte. Eu indo embora com os olhos nadando no meu próprio rio. Feliz. O amor está aqui. Eu amando de novo. Eu arrancando a roupa de kamikaze. Porra nenhuma! Não morro. Renasço. Eu amando lá e cá. Eu inundada em amor. Eu amando diferente. Eu sendo amor. Eu dando amor. Eu amando em liberdade. Amor leve. Amor sem apego. Amor sem prisão. Amor sem querer pra si. Amor sem culpa. Amor sem data de validade. Amor livre. Amor, amor, amor. Amor de muito.

Quis escrever em algum muro da cidade o que agora deixo aqui:

Ei! Você que já esteve em minha vida, deixa eu te dizer. Lhe  amo. Pode ir, não precisa voltar. Pode sumir, não estar, deixar de ser, mudar, partir. Não importa. Voe! Eu te amo. Voe!

Ass: Mel


Pra ler ouvindo: Passarinho - Curumin

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Carta para quem já me fez chorar


Olha só, deixa eu te dizer, eu não odeio você. 



Te digo isso, assim, dessa forma direta, por ter certeza do que sinto. Eu seria leviana e ridícula se te dissesse que não detesto algumas pessoas nessa vida. Sim, algumas. Transito entre não ter apreço e ignorar. Confesso para você que, na maioria das vezes, eu prefiro ignorar a detestar. Odiar dá trabalho e, veja bem, eu não acho que ninguém que eu julgue ruim mereça algum esforço da minha parte. Então, não odeio. Ignoro. Desprezo. Esqueço. 

Mas isso não aconteceu com você. Eu já até tentei, mas não consegui. Quando estamos no cume da montanha de dissabores a tendência é abrir a gaveta do ódio e vestir armaduras pesadas para dar força ao ato de odiar. Todo mundo tem essa gaveta no armário. Eu também tenho. Em todas as vezes que senti o vento frio que você soprou em meu rosto contrastar com o calor que eu sentia por dentro, eu pensei em pegar a minha melhor armadura e te agredir. Odiar é agredir. Quando odiamos desfiguramos o outro numa busca insana de desfazer o que conhecíamos, para justificar o engodo de não reconhecer uma presença que, sabe-se lá, se um dia existiu.  Odiamos para diminuir o peso do engano. Para disfarçar a tendência ridícula de fantasiar as pessoas. Odiamos para fazer valer a condição de vítimas. Para vingar as lágrimas derramadas. Odiamos para validar a sensação sádica de sofrimento intenso que contorna as afetividades não vingadas.

Eu te odeio tanto que não quis que você sequer imaginasse a tela desfigurada que fiz da sua pessoa, num dia em que enlouqueci ao ver meu coração em pedaços no chão do meu quarto. Te odeio tanto que contrario a lógica que determina os modelos de relação tidos como "comuns" e, quando me perguntam pela sua pessoa, me limito a sorrir e dizer que você está bem, mesmo não tendo notícias suas.  No fundo, ao responder, eu espero que você esteja muito bem. É que eu te odeio tanto que não lhe desejo mal algum. Nunca desejei. Não acho bacana te arremessar pedras. Te odeio de uma tal maneira que não gostaria de te ver com machucados provocados por mim. Eu não gostaria de te deixar uma cicatriz, ainda que ela fosse "invisível" a olhos nus. Você enxerga alguma cicatriz em mim? Te odeio tanto que não sei da sua vida, não quero saber, mas te ouviria atentamente por horas, caso você quisesse me falar sobre. Te odeio tão absurdamente que engano minha memória e bloqueio todas as lembranças. Todas. Boas ou ruins. Que é para eu não ter um parâmetro de comparação que me leve ao abismo de te odiar. Te odeio tanto que  sofri quando vi morrer aos poucos a muda de hibisco que eu plantei para você no meu jardim. Eu não queria, nem quero que você morra. Por favor, não morra. Não saberei lidar com isso. Te odeio tanto que desejo que você encontre alguém que te faça chorar, mas que, ao contrário de mim, você tenha sabedoria para entender que derrubar uma, duas, ou centenas de lágrimas faz bem. Te odeio tanto que desejo que, depois de descer a montanha de dissabores, você possa escrever uma carta como essa para quem te fez chorar. 

A verdade é que a minha estrutura não é tão forte quanto parece, mas nada é tão ruim assim. Tenho passarinhos na janela, um jardim, livros, música, latas de tinta, doces e um coração que vive numa enorme gaiola dourada. Aberta.  Eu escolho não te odiar porque pesa o coração. Não alimenta. Só pesa. Não te odeio porque prefiro dar de comer em dobro ao meu coração, ao invés de te cobrar que faça isso. Alimento por mim e por você. Eu não te odeio porque abrindo as portas para o ódio eu fecho as portas para você. E para mim também. Você está no álbum de fotografias que eu não tiro da caixa, na parede de memórias que eu passo os olhos rapidamente ao longo do dia e deixo ficar no mesmo lugar. Eu não te odeio porque de uma forma ou outra você mora nessa estrutura forte e frágil que não reconhece outra forma de viver se não for amando. 

Fica em paz na sua paz.

Um beijo. 

terça-feira, 5 de maio de 2015

Paçoca de amor.



- Acredito que seja uma crise mundial, tipo essas crises econômicas, sabe? Criolo falou só de São Paulo, mas não há amor no mundo todo. Se bem que, a prima de Bia está morando no Canadá e vira e mexe está namorando sério com alguém. Namoro sério! Coisa séria! De declaração no Facebook e tudo. Talvez ir para o Canadá seja uma saída. Você acha o quê?
- Cê tá falando sério?
- Lógico! Você vai me dizer que não quer amar e ser amada? Ouvi da minha terapeuta que precisamos correr atrás do amor, sair da inércia.
- Deus me livre dessa disposição.
- Mas os tempos mudaram. Não dá mais pra ficar esperando, acreditando que um dia vai chegar o amor na nossa porta. E a concorrência? Imensa. É desleal. Não acredito que você ache mesmo que, na atual conjuntura, possa ficar assim, de pernas cruzadas. Reaja!
- Detesto quem argumenta as coisas trazendo esse " na atual conjuntura". Me soa falso. Discurso de político ou de pseudo intelectual extremamente atualizado sobre a realidade. Ridículo. Sabe de porra nenhuma. Não existe atual conjuntura porque é impossível homogeneizar a realidade. Minha conjuntura não é a mesma que a sua, baby. 
- Mas a realidade precisa ser trazida a tona para que possamos compreender os fatos. Para que possamos nos posicionar. Como você pode achar que as coisas não estão estranhas? Como você pode ignorar o fato de que tem mais mulher do que homem no mundo? Como você pode não se incomodar com a falta de amor? Como você consegue viver nesse mundo a parte? Eu insisto: reaja! Vamos a luta!
- Prefiro ficar aqui mesmo, viu? Suave na nave.
- Mulher, o tempo tá passando! Eu não acredito que isso não te preocupe. Durmo e acordo pensando nisso. E todo mundo que conheço está na mesma. Afinal de contas, todo mundo quer amor. Todo mundo!
- Jura? Eu também quero, mas deixa eu te dizer. Eu sou preguiçosa demais para correr atrás de qualquer coisa que eu não acredito. Não, eu não acredito nesse amor desesperado. Nessa busca incessante por um argamassa forte que tape buracos sentimentais. Isso é de outra ordem que, veja bem, eu não acho que seja falta de amor. De um pedreiro, talvez. Não sei. Mas quando alguma coisa não vai bem na minha estrutura eu não chamo ninguém para fazer reformas. Eu mesma faço. Eu não acho que preciso correr atrás de sentimentos porque no meu mundo eles chegam e ficam se assim quiserem, assim como as pessoas. Quando não querem ou não devem ficar, eu os deixo ir. Soa frio, né? Impessoal. Eu estou longe de ser fria, mas acontece que não aceito ser engaiolada. Por que, então, eu tentaria engaiolar sentimentos ou pessoas? Sem sentido. Me incomoda a falta de amor, sim, mas não esse aí. Acho preocupante a falta de amor de graça. Daqueles que damos porque queremos dar e ponto. Amor fraterno. Amor próprio. Amor leve. Amor suave. Imagina que louco se aprendêssemos desde cedo a preparar e comer do nosso próprio amor? Unir todas as múltiplas formas de amar que carregamos, misturar com água e comer de mão. Todos os dias. Sempre ao acordar, durante as refeições e antes de dormir. Seria lindo. E, consequentemente, seríamos amor. Sabe uma coisa? Vou começar a preparar e comer de mão a minha paçoca de amor enquanto vejo a banda passar.
- Preguiçosa. 
- O amor e a preguiça são parentes, otária. Procure saber. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Problema seu.




É que eu me apego aos detalhes e não ao todo da coisa. É assim desde que me entendo por gente. Não me interessava tanto a boneca imensa que meu padrinho me presenteava. Eu parava no detalhe do vestido, dos sapatos, na cartela de cores da caixa, nos olhos mortos que pareciam vivos quando eu sacolejava a boneca, nos cílios imensos e curvados que me faziam pensar que um dia eu poderia usar o estojo de maquiagem de mainha. Eu observava a expressão do rosto do meu padrinho e da sua esposa. A evidente impaciência dela que contrastava com a amorosidade dele em me pegar no colo e me ajudar a rasgar a embalagem. Devia ser estranho para quem me presenteava perceber que eu não me empolgava com o todo, mas sim, com uma parte. Estranho e constrangedor, talvez. Ou não. 
Não é meu intento constranger quem quer que seja, mas não sei me portar de outra forma se não observando. Eu tenho a estranha mania de observar mais do que falar e ao longo do tempo percebi que isso era um problema e uma solução.
Certa feita, lá na minha infância, um amigo de mainha me chamou de "criança estranha". Assim, na lata, sem nem me dar um saquinho de jujuba para começar o papo. Do alto dos meus 8 anos de idade eu custei a entender a explicação que o tio me deu, mas que ecoa viva na minha cabeça até hoje: "Por que você não é como toda criança que brinca e só brinca? Por que parece que você está observando todo mundo o tempo todo? Não ri de tudo, não faz questão de brincar com todo mundo. Você é uma criança estranha.  Pare com isso, ou ninguém vai gostar de você!"
Eu não chorei quando levei essa pedrada. Ouvi, olhei bem no fundo do olho dele para ver se através da retina eu encontrava a tradução daquilo tudo, sorri um sorriso que não era amarelo, mas também não era vermelho e sai. Fui terminar de colorir uma mandala que o amigo hippie do meu irmão mais velho tinha me dado. Demorou um bom tempo para que eu entendesse que o tio tava certo. Eu era uma criança estranha e ele, um adulto otário. Ponto para mim.
Eu também não levei essa pedrada para terapia. Achei uma puta perda de tempo. O que eu poderia ouvir diferente do que eu já havia observado/pensado? Certamente eu sairia da terapia achando que feliz era a Luana, a menina mais certinha da escola, sempre sorridente, obediente, nunca ficava emburrada. A Luana parecia dormir e acordar feliz, que nem os personagens de comercial de margarina.  A voz doce, o cabelo arrumado.  Luana nunca dava respostas tortas e se te conhecesse hoje em menos de meia hora declarava amor eterno. A mãe da Lu ensinou que não existe essa coisa de não gostar. O certo é gostar de todo mundo. Puta falsidade. Luana não tinha reflexões existenciais em seus 8 anos de idade, mas eu tinha. Várias. Tantas que me fizeram saber o caminho exato para buscar a maleta de primeiros socorros e tratar dos machucados pós pedradas. Sem muxoxo. Sem chorar no colo de mainha. 
Eu deveria ter pensado melhor no que o tio me disse e ter me tornado uma criança "normal" para, quem sabe hoje, ser uma adulta "normal". Não deu, tio. Peguei a contramão. Não deu para ser uma adulta "normal", que olha para o todo e não para as partes. Quem enxerga o todo usa, no máximo, lentes de descanso. Quem enxerga minúcias usa óculos fundo de garrafa. Pesa, cansa e dói.  Quem se apaixona pelo todo sofre menos do que quem se apaixona por partes que significam três vezes mais que o todo. É mais fácil jogar fora uma mala fechada do que escolher uma ou duas coisas dentre as tantas que estão contidas nela. Será que o tio entenderia essa minha equação? Acho que não.
Eu não sei gostar de primeira. Nunca soube. Nunca saberei. Não é por mal. Antes de gostar eu observo tanto, sinto tanto, que acabo me apaixonando escandalosamente. Ou não. Mainha sempre diz que o que eu não falo, a minha cara grita. Ela tem razão. Eu até tento, mas não dissimulo o que penso por completo. Minha cara entrega de bandeja, a quem tenha olhos para ver, o que minha boca se recusou a externar. 
Não deu para ser feliz o tempo todo, interagir com todo mundo e ignorar a beleza do silêncio solitário e a leveza que só a seletividade pode dar. A tristeza e o cheiro de piso de madeira que ela tem. A liberdade em não ser e não estar como a maioria espera. Eu não sei ser quem não sou.  Gosto de ouvir o barulho que meu mundo tem e que ninguém pode ouvir. Só eu. Eu não seria mais feliz se tivesse forçado a natureza. Eu não seria melhor se tivesse me tornado uma Luana. O tio me chamaria de estranha de novo se lesse isso. Foda-se, tio. Problema seu. Eu aprendi a dissolver o que me arremessam com aquilo que mais lhe incomodam: meu não ser adequado. 

Beijo, tio. 


quarta-feira, 4 de março de 2015

Eu sou insensível

Nos conhecemos em um bar, numa sexta-feira dessas em que a gente sai de casa tão somente para não ficar em casa. Nada de muito interessante ou motivador. Apenas a necessidade de enfiar um canivete na mão do tédio.
Em companhia de duas amigas encarei o desafio de sentar em um bar que nada tinha a ver comigo. Nem a decoração, tampouco a música. Nada. Eu não sou muito afeita a bares, mas existem um ou outro que me ganham pelo clima leve, as cores da parede, lembranças afetivas ou pela seleção musical que me faz analisar o fundo do copo da cerveja, ou bater na mesa animadamente, num desses rompantes alegres de quem bebeu um pouco a mais. É aquele momento em que passamos da linha azul celeste e encontramos uma placa indicando que a linha vermelha está próximo.
O bar não me servia, mas eu estava lá porque tinha um tédio no colo e um canivete nas mãos. Justificativas plausíveis, claro. Em meio a uma dessas músicas da “moda” que incitam uma paquera tosca, meio teletubbiana, ele passou com alguns amigos pela nossa mesa e sorriu. Não devolvi o sorriso, pois estava observando a arte do cardápio do bar. Preto, laranja e verde escuro. Tosco. Minhas amigas, animadas com o sorriso dos rapazes, me tiraram da minha análise cromática e iniciaram aquele processo pré paquera onde cada uma puxa um espelho, ajeita o cabelo, arruma o decote, mexe no celular copiosamente, ri mais alto a fim de chamar a atenção, faz caras e bocas sensuais, infantilizam a voz, se mostraram seguras e coisa e tal. Fiquei inerte com o cardápio na mão e os olhos parados naquela cena típica de filme adolescente. Nem era sessão da tarde, mas eu tava ali, sendo quem sabe até uma das protagonistas daquela porcaria com cheiro de Fandangos. 
Os rapazes voltaram. Mesmo esquema previamente ensaiado. Olharam, sorriram e eu já sabia que depois de pelo menos dois minutos lá estariam eles perguntando se podiam sentar na nossa mesa.  Senti o tédio voltando. Nada contra a quem segue o mesmo esquema dos rapazes, mas acho péssimo. Contudo, naquele cenário minha opinião era o que menos importava, já que minhas amigas já tinham ido ao banheiro trocar os brincos para parecerem mais sensuais.
Dois minutos e lá estavam os rapazes em nossa mesa. Um de cada lado. Tipo duque. Um para cada menina. Tédio. O ensaio é tão bem feito que eles sentam automaticamente do lado de quem querem “pegar”. Mas e a nossa opinião? Não precisa. Não faz parte do enredo. Eu só queria tomar uma cerveja, gente. Cadê meu canivete?
Ele me perguntou meu nome, idade, o que fazia da vida, se ia sempre naquele bar, se morava naquela cidade, se curtia, onde e como se divertia e mais algumas perguntas robóticas que não iam nos levar a lugar algum. Depois da entrevista, ele me chamou de gatinha, pegou no meu cabelo e foi chegando mais perto de mim. Broxei dez vezes seguidas. Não sei quem ensinou a esses rapazes que depois da entrevista vem a intimidade. Realmente, não sei. 

Diante da minha cara de quem broxou ele me fez a pergunta da noite. Quiçá, da vida:

- Por que você é tão insensível?



Senti os músculos do meu rosto firmarem feito concreto fixado no chão, depois de horas exposto ao sol. Olhei bem no fundo dos olhos dele por cinco segundos. Séria. Concreto. Fui acometida por um balde de água gelada que dissolveu o concreto do meu rosto e me fez rir. Escandalosamente. Gargalhei na cara do rapaz que em quinze minutos de conversa/entrevista tinha me classificado de insensível. Ri da camisa gola pólo dele que combinava com o sapato de bico quadrado. Horríveis. Ri da pose das minhas amigas, arrumadas como pão de queijo na prateleira. Ri do “gatinha” e dos apelidinhos que certamente os outros rapazes dariam para minhas amigas. Ri da música horrível que tocava no bar. Do cardápio tosco. Dos ensaios que as pessoas fazem todos dias antes de sair de casa. Do garçom que, ao me ver gargalhar sem escrúpulos, quase derrubou a cerveja na calça apertada de um dos rapazes. Ri de mim mesma. Ri satisfeita. Ele estava certo. Eu sou insensível ao que não me dá tesão.