quarta-feira, 20 de maio de 2015

Carta para quem já me fez chorar


Olha só, deixa eu te dizer, eu não odeio você. 



Te digo isso, assim, dessa forma direta, por ter certeza do que sinto. Eu seria leviana e ridícula se te dissesse que não detesto algumas pessoas nessa vida. Sim, algumas. Transito entre não ter apreço e ignorar. Confesso para você que, na maioria das vezes, eu prefiro ignorar a detestar. Odiar dá trabalho e, veja bem, eu não acho que ninguém que eu julgue ruim mereça algum esforço da minha parte. Então, não odeio. Ignoro. Desprezo. Esqueço. 

Mas isso não aconteceu com você. Eu já até tentei, mas não consegui. Quando estamos no cume da montanha de dissabores a tendência é abrir a gaveta do ódio e vestir armaduras pesadas para dar força ao ato de odiar. Todo mundo tem essa gaveta no armário. Eu também tenho. Em todas as vezes que senti o vento frio que você soprou em meu rosto contrastar com o calor que eu sentia por dentro, eu pensei em pegar a minha melhor armadura e te agredir. Odiar é agredir. Quando odiamos desfiguramos o outro numa busca insana de desfazer o que conhecíamos, para justificar o engodo de não reconhecer uma presença que, sabe-se lá, se um dia existiu.  Odiamos para diminuir o peso do engano. Para disfarçar a tendência ridícula de fantasiar as pessoas. Odiamos para fazer valer a condição de vítimas. Para vingar as lágrimas derramadas. Odiamos para validar a sensação sádica de sofrimento intenso que contorna as afetividades não vingadas.

Eu te odeio tanto que não quis que você sequer imaginasse a tela desfigurada que fiz da sua pessoa, num dia em que enlouqueci ao ver meu coração em pedaços no chão do meu quarto. Te odeio tanto que contrario a lógica que determina os modelos de relação tidos como "comuns" e, quando me perguntam pela sua pessoa, me limito a sorrir e dizer que você está bem, mesmo não tendo notícias suas.  No fundo, ao responder, eu espero que você esteja muito bem. É que eu te odeio tanto que não lhe desejo mal algum. Nunca desejei. Não acho bacana te arremessar pedras. Te odeio de uma tal maneira que não gostaria de te ver com machucados provocados por mim. Eu não gostaria de te deixar uma cicatriz, ainda que ela fosse "invisível" a olhos nus. Você enxerga alguma cicatriz em mim? Te odeio tanto que não sei da sua vida, não quero saber, mas te ouviria atentamente por horas, caso você quisesse me falar sobre. Te odeio tão absurdamente que engano minha memória e bloqueio todas as lembranças. Todas. Boas ou ruins. Que é para eu não ter um parâmetro de comparação que me leve ao abismo de te odiar. Te odeio tanto que  sofri quando vi morrer aos poucos a muda de hibisco que eu plantei para você no meu jardim. Eu não queria, nem quero que você morra. Por favor, não morra. Não saberei lidar com isso. Te odeio tanto que desejo que você encontre alguém que te faça chorar, mas que, ao contrário de mim, você tenha sabedoria para entender que derrubar uma, duas, ou centenas de lágrimas faz bem. Te odeio tanto que desejo que, depois de descer a montanha de dissabores, você possa escrever uma carta como essa para quem te fez chorar. 

A verdade é que a minha estrutura não é tão forte quanto parece, mas nada é tão ruim assim. Tenho passarinhos na janela, um jardim, livros, música, latas de tinta, doces e um coração que vive numa enorme gaiola dourada. Aberta.  Eu escolho não te odiar porque pesa o coração. Não alimenta. Só pesa. Não te odeio porque prefiro dar de comer em dobro ao meu coração, ao invés de te cobrar que faça isso. Alimento por mim e por você. Eu não te odeio porque abrindo as portas para o ódio eu fecho as portas para você. E para mim também. Você está no álbum de fotografias que eu não tiro da caixa, na parede de memórias que eu passo os olhos rapidamente ao longo do dia e deixo ficar no mesmo lugar. Eu não te odeio porque de uma forma ou outra você mora nessa estrutura forte e frágil que não reconhece outra forma de viver se não for amando. 

Fica em paz na sua paz.

Um beijo. 

terça-feira, 5 de maio de 2015

Paçoca de amor.



- Acredito que seja uma crise mundial, tipo essas crises econômicas, sabe? Criolo falou só de São Paulo, mas não há amor no mundo todo. Se bem que, a prima de Bia está morando no Canadá e vira e mexe está namorando sério com alguém. Namoro sério! Coisa séria! De declaração no Facebook e tudo. Talvez ir para o Canadá seja uma saída. Você acha o quê?
- Cê tá falando sério?
- Lógico! Você vai me dizer que não quer amar e ser amada? Ouvi da minha terapeuta que precisamos correr atrás do amor, sair da inércia.
- Deus me livre dessa disposição.
- Mas os tempos mudaram. Não dá mais pra ficar esperando, acreditando que um dia vai chegar o amor na nossa porta. E a concorrência? Imensa. É desleal. Não acredito que você ache mesmo que, na atual conjuntura, possa ficar assim, de pernas cruzadas. Reaja!
- Detesto quem argumenta as coisas trazendo esse " na atual conjuntura". Me soa falso. Discurso de político ou de pseudo intelectual extremamente atualizado sobre a realidade. Ridículo. Sabe de porra nenhuma. Não existe atual conjuntura porque é impossível homogeneizar a realidade. Minha conjuntura não é a mesma que a sua, baby. 
- Mas a realidade precisa ser trazida a tona para que possamos compreender os fatos. Para que possamos nos posicionar. Como você pode achar que as coisas não estão estranhas? Como você pode ignorar o fato de que tem mais mulher do que homem no mundo? Como você pode não se incomodar com a falta de amor? Como você consegue viver nesse mundo a parte? Eu insisto: reaja! Vamos a luta!
- Prefiro ficar aqui mesmo, viu? Suave na nave.
- Mulher, o tempo tá passando! Eu não acredito que isso não te preocupe. Durmo e acordo pensando nisso. E todo mundo que conheço está na mesma. Afinal de contas, todo mundo quer amor. Todo mundo!
- Jura? Eu também quero, mas deixa eu te dizer. Eu sou preguiçosa demais para correr atrás de qualquer coisa que eu não acredito. Não, eu não acredito nesse amor desesperado. Nessa busca incessante por um argamassa forte que tape buracos sentimentais. Isso é de outra ordem que, veja bem, eu não acho que seja falta de amor. De um pedreiro, talvez. Não sei. Mas quando alguma coisa não vai bem na minha estrutura eu não chamo ninguém para fazer reformas. Eu mesma faço. Eu não acho que preciso correr atrás de sentimentos porque no meu mundo eles chegam e ficam se assim quiserem, assim como as pessoas. Quando não querem ou não devem ficar, eu os deixo ir. Soa frio, né? Impessoal. Eu estou longe de ser fria, mas acontece que não aceito ser engaiolada. Por que, então, eu tentaria engaiolar sentimentos ou pessoas? Sem sentido. Me incomoda a falta de amor, sim, mas não esse aí. Acho preocupante a falta de amor de graça. Daqueles que damos porque queremos dar e ponto. Amor fraterno. Amor próprio. Amor leve. Amor suave. Imagina que louco se aprendêssemos desde cedo a preparar e comer do nosso próprio amor? Unir todas as múltiplas formas de amar que carregamos, misturar com água e comer de mão. Todos os dias. Sempre ao acordar, durante as refeições e antes de dormir. Seria lindo. E, consequentemente, seríamos amor. Sabe uma coisa? Vou começar a preparar e comer de mão a minha paçoca de amor enquanto vejo a banda passar.
- Preguiçosa. 
- O amor e a preguiça são parentes, otária. Procure saber.