Dia desses tive um sonho deveras estranho. Sonhei que estava apaixonada, imersa em um estado de graça que sublima qualquer rastro de razão e faz germinar vigorosos suspiros de emoção. Eu estava bonita, vistosa, como essas pessoas que saem rindo por aí sem motivo aparente, cantando músicas de melodia doce e vendo graça nas coisas mais sem graça que existem no mundo. Coisa bonita de se ver.
No sonho, o meu amor era misterioso e isso me fazia ficar ligada a ele de uma forma intensa. Às vezes perto, às vezes longe. Por vezes parecia meu, noutras de todo mundo. Mas eu permanecia dele. Mesmo ele não sabendo e quem sabe, até mesmo não querendo. Me ensinava que desapego deveria ser desmedido. Das coisas, das pessoas, dos momentos. Como um exímio professor de gramática, me ensinou a conjugar o verbo desapegar em todos os tempos. Quando eu parecia querer me afogar nos seus braços e morar no seu calor ele me reprimia e dizia solenemente: de-sa-pe-gue. E eu, como boa aluna, aprendia. Internalizei o verbo, os tempos, as sílabas, os fonemas. Aprendi.
De maneira doce ele me ensinou a ser fria e calculista. Dizia em linhas tortas que amor de muito era bom, bonito, mas que poderia esperar. Que o relógio certo só tocaria a hora certa, no momento certo. E, claro, com a pessoa certa. Que empecilhos idiotas serviam para explicar falta de querer. E que não havia mal algum em usá-los sempre que fosse necessário. Que ser atenciosa não estava com nada e bom mesmo era deixar no vácuo.
Meu amor me ensinava que, na brincadeira de se envolver, quando o carinho fosse grande o suficiente para se tornar em algo tão pesado que precisasse ser doado, era hora de pedir dois autos. Assim, bruscamente. Friamente. Como quem decide que não quer mais dormir do lado direito da cama. E eu aprendia. Ditava no meu ouvido que tanto fazia estar ou não. Que depois não existia. Que o agora era importante em certa medida e que ontem eu nem deveria lembrar. Que fragilidades deveriam ser escondidas. Que carência até existia, mas que poderia ser resolvida de maneira objetiva. Que demonstrações de afeto eram bonitinhas, mas digamos, desnecessárias. No máximo serviam para rir ou resultavam em um " que bonitinho". Ele não entendia quando eu ficava desnorteada, indecisa. Apenas debochava. E eu, como boa aluna, aprendia que certo mesmo era fazer como ele ensinava.
Rindo sarcasticamente ele me ensinava a ser menos romântica. Sua didática consistia em debochar dos meus momentos doces como forma de me dizer que nada daquilo valia a pena. E eu aprendia. No sonho, parecíamos cheios de afinidades. Ou melhor,um de nós queria que afinidades fossem o elo propulsor de quem sabe um amor. Era eu tirando os óculos para não ver que na verdade éramos opostos gritantes. De um lado querer demais, do outro querer de menos. Mesmo assim eu insistia. Bloqueei todas as minhas portas e janelas de querer. Nada entrava, muito menos saia. No sonho eu me tornava uma espécie de cria do meu amor. Eu era ele em fase de aprendizagem avançada. Fria, distante, desapegada, calculista, impessoal, insensível, desfocada. Incapaz de dar e/ou receber amor. E, mais que tudo isso, covarde.
Acordei sobressaltada.
A respiração ofegante, o coração acelerado e a necessidade de concatenar as ideias de forma rápida e precisa para que ficasse claro que tudo aquilo não passava de um sonho. Ou, quem sabe, um pesadelo. Coloquei as duas mãos na cabeça no intuito de me situar no tempo. Quis ler Freud e encontrar um significado para aquele sonho. Não era eu. Jamais poderia ser eu. Não há a menor possibilidade de um dia eu ser tudo aquilo que o meu sonho projetava. Lavei o rosto com água gelada, me olhei no espelho por alguns minutos. Nem nascendo de novo eu seria daquele jeito. Andei pela casa no escuro dando passos pesados enquanto repetia internamente que tudo aquilo não tinha passado de um sonho. Voltei para o quarto, peguei o celular para ver as horas, mas instintivamente fui direto na pasta de músicas. Busquei a que me interessava, deitei no travesseiro, coloquei a música para tocar baixinho e adormeci entoando para mim, para o tempo, para as pessoas, para o universo que não importa quem esteja comigo ou onde eu vá. Eu sou romântica. Me alimento de suspiros e dengos. Não sei medir querer e acho mesmo que quem mede não sabe sentir, tampouco viver. Ainda acredito nas pessoas, nos sentimentos, no destino, no músculo involuntário. Tenho em mim a sede de amar. No tempo, no momento, no instante, no milésimo de segundo que passa ao piscar dos olhos. Eu sou amor da cabeça aos pés. E isso nunca vai mudar.