quarta-feira, 4 de março de 2015

Eu sou insensível

Nos conhecemos em um bar, numa sexta-feira dessas em que a gente sai de casa tão somente para não ficar em casa. Nada de muito interessante ou motivador. Apenas a necessidade de enfiar um canivete na mão do tédio.
Em companhia de duas amigas encarei o desafio de sentar em um bar que nada tinha a ver comigo. Nem a decoração, tampouco a música. Nada. Eu não sou muito afeita a bares, mas existem um ou outro que me ganham pelo clima leve, as cores da parede, lembranças afetivas ou pela seleção musical que me faz analisar o fundo do copo da cerveja, ou bater na mesa animadamente, num desses rompantes alegres de quem bebeu um pouco a mais. É aquele momento em que passamos da linha azul celeste e encontramos uma placa indicando que a linha vermelha está próximo.
O bar não me servia, mas eu estava lá porque tinha um tédio no colo e um canivete nas mãos. Justificativas plausíveis, claro. Em meio a uma dessas músicas da “moda” que incitam uma paquera tosca, meio teletubbiana, ele passou com alguns amigos pela nossa mesa e sorriu. Não devolvi o sorriso, pois estava observando a arte do cardápio do bar. Preto, laranja e verde escuro. Tosco. Minhas amigas, animadas com o sorriso dos rapazes, me tiraram da minha análise cromática e iniciaram aquele processo pré paquera onde cada uma puxa um espelho, ajeita o cabelo, arruma o decote, mexe no celular copiosamente, ri mais alto a fim de chamar a atenção, faz caras e bocas sensuais, infantilizam a voz, se mostraram seguras e coisa e tal. Fiquei inerte com o cardápio na mão e os olhos parados naquela cena típica de filme adolescente. Nem era sessão da tarde, mas eu tava ali, sendo quem sabe até uma das protagonistas daquela porcaria com cheiro de Fandangos. 
Os rapazes voltaram. Mesmo esquema previamente ensaiado. Olharam, sorriram e eu já sabia que depois de pelo menos dois minutos lá estariam eles perguntando se podiam sentar na nossa mesa.  Senti o tédio voltando. Nada contra a quem segue o mesmo esquema dos rapazes, mas acho péssimo. Contudo, naquele cenário minha opinião era o que menos importava, já que minhas amigas já tinham ido ao banheiro trocar os brincos para parecerem mais sensuais.
Dois minutos e lá estavam os rapazes em nossa mesa. Um de cada lado. Tipo duque. Um para cada menina. Tédio. O ensaio é tão bem feito que eles sentam automaticamente do lado de quem querem “pegar”. Mas e a nossa opinião? Não precisa. Não faz parte do enredo. Eu só queria tomar uma cerveja, gente. Cadê meu canivete?
Ele me perguntou meu nome, idade, o que fazia da vida, se ia sempre naquele bar, se morava naquela cidade, se curtia, onde e como se divertia e mais algumas perguntas robóticas que não iam nos levar a lugar algum. Depois da entrevista, ele me chamou de gatinha, pegou no meu cabelo e foi chegando mais perto de mim. Broxei dez vezes seguidas. Não sei quem ensinou a esses rapazes que depois da entrevista vem a intimidade. Realmente, não sei. 

Diante da minha cara de quem broxou ele me fez a pergunta da noite. Quiçá, da vida:

- Por que você é tão insensível?



Senti os músculos do meu rosto firmarem feito concreto fixado no chão, depois de horas exposto ao sol. Olhei bem no fundo dos olhos dele por cinco segundos. Séria. Concreto. Fui acometida por um balde de água gelada que dissolveu o concreto do meu rosto e me fez rir. Escandalosamente. Gargalhei na cara do rapaz que em quinze minutos de conversa/entrevista tinha me classificado de insensível. Ri da camisa gola pólo dele que combinava com o sapato de bico quadrado. Horríveis. Ri da pose das minhas amigas, arrumadas como pão de queijo na prateleira. Ri do “gatinha” e dos apelidinhos que certamente os outros rapazes dariam para minhas amigas. Ri da música horrível que tocava no bar. Do cardápio tosco. Dos ensaios que as pessoas fazem todos dias antes de sair de casa. Do garçom que, ao me ver gargalhar sem escrúpulos, quase derrubou a cerveja na calça apertada de um dos rapazes. Ri de mim mesma. Ri satisfeita. Ele estava certo. Eu sou insensível ao que não me dá tesão.