Nos conhecemos em um bar, numa sexta-feira dessas em que a
gente sai de casa tão somente para não ficar em casa. Nada de muito interessante ou
motivador. Apenas a necessidade de enfiar um canivete na mão do tédio.
Em companhia de duas amigas encarei o desafio de sentar em um
bar que nada tinha a ver comigo. Nem a decoração, tampouco a música. Nada. Eu não
sou muito afeita a bares, mas existem um ou outro que me ganham pelo clima leve,
as cores da parede, lembranças afetivas ou pela seleção musical que me faz analisar o fundo do copo
da cerveja, ou bater na mesa animadamente, num desses rompantes alegres de quem
bebeu um pouco a mais. É aquele momento em que passamos da linha azul celeste e
encontramos uma placa indicando que a linha vermelha está próximo.
O bar não me servia, mas eu estava lá porque tinha um tédio
no colo e um canivete nas mãos. Justificativas plausíveis, claro. Em meio a uma
dessas músicas da “moda” que incitam uma paquera tosca, meio teletubbiana, ele
passou com alguns amigos pela nossa mesa e sorriu. Não devolvi o sorriso, pois
estava observando a arte do cardápio do bar. Preto, laranja e verde escuro.
Tosco. Minhas amigas, animadas com o sorriso dos rapazes, me tiraram da minha
análise cromática e iniciaram aquele processo pré paquera onde cada uma puxa um
espelho, ajeita o cabelo, arruma o decote, mexe no celular copiosamente, ri
mais alto a fim de chamar a atenção, faz caras e bocas sensuais, infantilizam a voz, se mostraram seguras e coisa e tal. Fiquei inerte com o cardápio na mão e os
olhos parados naquela cena típica de filme adolescente. Nem era sessão da
tarde, mas eu tava ali, sendo quem sabe até uma das protagonistas daquela
porcaria com cheiro de Fandangos.
Os rapazes voltaram. Mesmo esquema previamente ensaiado.
Olharam, sorriram e eu já sabia que depois de pelo menos dois minutos lá
estariam eles perguntando se podiam sentar na nossa mesa. Senti o tédio voltando. Nada contra a quem
segue o mesmo esquema dos rapazes, mas acho péssimo. Contudo, naquele cenário
minha opinião era o que menos importava, já que minhas amigas já tinham ido
ao banheiro trocar os brincos para parecerem mais sensuais.
Dois minutos e lá estavam os rapazes em nossa mesa. Um de
cada lado. Tipo duque. Um para cada menina. Tédio. O ensaio é tão bem feito que
eles sentam automaticamente do lado de quem querem “pegar”. Mas e a nossa opinião? Não precisa. Não faz parte do enredo. Eu só queria tomar uma cerveja, gente. Cadê meu canivete?
Ele me perguntou meu nome, idade, o que fazia da vida, se ia
sempre naquele bar, se morava naquela cidade, se curtia, onde e como se divertia e mais algumas perguntas
robóticas que não iam nos levar a lugar algum. Depois da entrevista, ele me
chamou de gatinha, pegou no meu cabelo e foi chegando mais perto de mim. Broxei
dez vezes seguidas. Não sei quem ensinou a esses rapazes que depois da
entrevista vem a intimidade. Realmente, não sei.
Diante da minha cara de quem broxou ele me fez a pergunta da
noite. Quiçá, da vida:
- Por que você é tão insensível?
Senti os músculos do meu rosto firmarem feito concreto fixado
no chão, depois de horas exposto ao sol. Olhei bem no fundo dos olhos dele por cinco segundos. Séria. Concreto.
Fui acometida por um balde de água gelada que dissolveu o concreto do meu rosto
e me fez rir. Escandalosamente. Gargalhei na cara do rapaz que em quinze
minutos de conversa/entrevista tinha me classificado de insensível. Ri da
camisa gola pólo dele que combinava com o sapato de bico quadrado. Horríveis.
Ri da pose das minhas amigas, arrumadas como pão de queijo na prateleira. Ri do “gatinha”
e dos apelidinhos que certamente os outros rapazes dariam para minhas amigas. Ri
da música horrível que tocava no bar. Do cardápio tosco. Dos ensaios que as pessoas fazem todos dias antes de sair de casa. Do garçom que, ao me ver gargalhar sem escrúpulos, quase derrubou a cerveja na calça apertada de um dos rapazes. Ri de mim mesma. Ri satisfeita. Ele
estava certo. Eu sou insensível ao que não me dá tesão.