quinta-feira, 9 de abril de 2015

Problema seu.




É que eu me apego aos detalhes e não ao todo da coisa. É assim desde que me entendo por gente. Não me interessava tanto a boneca imensa que meu padrinho me presenteava. Eu parava no detalhe do vestido, dos sapatos, na cartela de cores da caixa, nos olhos mortos que pareciam vivos quando eu sacolejava a boneca, nos cílios imensos e curvados que me faziam pensar que um dia eu poderia usar o estojo de maquiagem de mainha. Eu observava a expressão do rosto do meu padrinho e da sua esposa. A evidente impaciência dela que contrastava com a amorosidade dele em me pegar no colo e me ajudar a rasgar a embalagem. Devia ser estranho para quem me presenteava perceber que eu não me empolgava com o todo, mas sim, com uma parte. Estranho e constrangedor, talvez. Ou não. 
Não é meu intento constranger quem quer que seja, mas não sei me portar de outra forma se não observando. Eu tenho a estranha mania de observar mais do que falar e ao longo do tempo percebi que isso era um problema e uma solução.
Certa feita, lá na minha infância, um amigo de mainha me chamou de "criança estranha". Assim, na lata, sem nem me dar um saquinho de jujuba para começar o papo. Do alto dos meus 8 anos de idade eu custei a entender a explicação que o tio me deu, mas que ecoa viva na minha cabeça até hoje: "Por que você não é como toda criança que brinca e só brinca? Por que parece que você está observando todo mundo o tempo todo? Não ri de tudo, não faz questão de brincar com todo mundo. Você é uma criança estranha.  Pare com isso, ou ninguém vai gostar de você!"
Eu não chorei quando levei essa pedrada. Ouvi, olhei bem no fundo do olho dele para ver se através da retina eu encontrava a tradução daquilo tudo, sorri um sorriso que não era amarelo, mas também não era vermelho e sai. Fui terminar de colorir uma mandala que o amigo hippie do meu irmão mais velho tinha me dado. Demorou um bom tempo para que eu entendesse que o tio tava certo. Eu era uma criança estranha e ele, um adulto otário. Ponto para mim.
Eu também não levei essa pedrada para terapia. Achei uma puta perda de tempo. O que eu poderia ouvir diferente do que eu já havia observado/pensado? Certamente eu sairia da terapia achando que feliz era a Luana, a menina mais certinha da escola, sempre sorridente, obediente, nunca ficava emburrada. A Luana parecia dormir e acordar feliz, que nem os personagens de comercial de margarina.  A voz doce, o cabelo arrumado.  Luana nunca dava respostas tortas e se te conhecesse hoje em menos de meia hora declarava amor eterno. A mãe da Lu ensinou que não existe essa coisa de não gostar. O certo é gostar de todo mundo. Puta falsidade. Luana não tinha reflexões existenciais em seus 8 anos de idade, mas eu tinha. Várias. Tantas que me fizeram saber o caminho exato para buscar a maleta de primeiros socorros e tratar dos machucados pós pedradas. Sem muxoxo. Sem chorar no colo de mainha. 
Eu deveria ter pensado melhor no que o tio me disse e ter me tornado uma criança "normal" para, quem sabe hoje, ser uma adulta "normal". Não deu, tio. Peguei a contramão. Não deu para ser uma adulta "normal", que olha para o todo e não para as partes. Quem enxerga o todo usa, no máximo, lentes de descanso. Quem enxerga minúcias usa óculos fundo de garrafa. Pesa, cansa e dói.  Quem se apaixona pelo todo sofre menos do que quem se apaixona por partes que significam três vezes mais que o todo. É mais fácil jogar fora uma mala fechada do que escolher uma ou duas coisas dentre as tantas que estão contidas nela. Será que o tio entenderia essa minha equação? Acho que não.
Eu não sei gostar de primeira. Nunca soube. Nunca saberei. Não é por mal. Antes de gostar eu observo tanto, sinto tanto, que acabo me apaixonando escandalosamente. Ou não. Mainha sempre diz que o que eu não falo, a minha cara grita. Ela tem razão. Eu até tento, mas não dissimulo o que penso por completo. Minha cara entrega de bandeja, a quem tenha olhos para ver, o que minha boca se recusou a externar. 
Não deu para ser feliz o tempo todo, interagir com todo mundo e ignorar a beleza do silêncio solitário e a leveza que só a seletividade pode dar. A tristeza e o cheiro de piso de madeira que ela tem. A liberdade em não ser e não estar como a maioria espera. Eu não sei ser quem não sou.  Gosto de ouvir o barulho que meu mundo tem e que ninguém pode ouvir. Só eu. Eu não seria mais feliz se tivesse forçado a natureza. Eu não seria melhor se tivesse me tornado uma Luana. O tio me chamaria de estranha de novo se lesse isso. Foda-se, tio. Problema seu. Eu aprendi a dissolver o que me arremessam com aquilo que mais lhe incomodam: meu não ser adequado. 

Beijo, tio.